Israel como nunca

Editado este ano pela ASA, Uma História de Amor e Trevas, de Amoz Oz, é um livro de memórias, entre a autobiografia e o romance, sobre a infância do autor em Jerusalém. A partir de um curto tempo nuclear, cerca de 120 anos de história nacional e familiar passam por um texto «impregnado de ruído e fúria, nostalgia, perda e solidão».

Começa por revelar um espaço cultural que nos é em larga medida estranho. Sobre o qual, aqui a ocidente, quase nada sabemos. Este universo radica-se numa identidade judaica que, no imenso território de diáspora que ia da Europa Central à Rússia mais profunda, permitiu o estabelecimento de uma notável cultura intelectual capaz de admitir a coabitação de ortodoxos, sionistas e simpatizantes da esquerda e do comunismo. A integração não excluía, porém, a produção de clivagens, a mais visível das quais se mostrou durante o próprio Holocausto – basta lembrar as fortes divergências dentro do ghetto de Varsóvia, entre os partidários da colaboração como mal menor e da insurreição como necessidade – e foi depois vertida para o interior de Israel, sendo particularmente sentia na década de 1950, a época à qual Oz se reporta mais directamente. Refiro-me à clara separação entre aqueles que defendiam a secular atitude de aceitação, que permitira aos judeus sobreviveram durante séculos às inúmeras perseguições, e aqueles outros que, após Auschwitz, pensavam que apenas se poderia responder violência com a violência, de modo a evitar o regresso do horror. No mundo extremamente culto e politizado que o pequeno Amos frequentara, todas as sensibilidades e nuances culturais mantinham ainda este antagonismo essencial como cenário.

Este livro proporciona também um espaço de reflexão que se projecta sobre o mundo contemporâneo. Deve relembrar-se o papel de Amoz Oz no movimento Peace Now – que defende a inevitabilidade de um acordo justo e definitivo com os palestinianos, mas não a capitulação de Israel, que as ditaduras árabes, os radicais islâmicos e os seus aliados ocidentais tão ardentemente desejam – e as suas posições públicas neste domínio, parte das quais podem ser conhecidas no pequeno volume de ensaios Sobre o Fanatismo (que há poucos meses o Público ofereceu aos seus leitores). No melhor e mais belo desses ensaios, «Da natureza do fanatismo», o escritor, que fora em tempos «um rapaz que atirava pedras, um rapaz da Intifada judaica», salienta a antiguidade da experiência desse fanatismo «mais velho do que o Islão, do que o Cristianismo, do que o Judaísmo», salientando porém que a sua própria infância em Jerusalém o havia convertido num «especialista em fanatismo comparado». É a experiência desta «especialização» que Oz nos vai revelando no seu livro de memórias, transportando-nos até um ponto no qual poderemos compreender melhor a legitimidade, e igualmente a inutilidade, do ódio instalado. Ao mesmo tempo, a extrema dureza do período de reinstalação dos judeus no território de Israel e depois da independência do Estado – bem, num movimento de fast forward, o processo de restabelecimento das fronteiras «bíblicas», ocorrido já em 1967, após a vitória «milagrosa» na guerra dos Seis Dias – permite-nos também entender as contradições, e igualmente as razões, de muitas das posições da opinião pública israelita e dos seus diferentes governos ao longo das últimas décadas. Dando-nos a ver, se não quisermos permanecer cegos, que estes jamais poderão aceitar um retorno à condição histórica de párias e errantes que, geração após geração, todos os seus antepassados viveram.

Uma História de Amor e Trevas é ainda, pela forma como revela os processos de apreensão do mundo e das suas mudanças pelo jovem Amos, um elogio da leitura e da imaginação. E também um livro de grande beleza e compaixão, que facilmente nos conduz por uma viagem de ida e volta entre o riso e as lágrimas. Afinal, aquilo que a maior parte de nós mais habitualmente procura nas leituras às quais se entrega por puro prazer. Um crítico do Guardian considerou-o «um dos mais divertidos, mais trágicos e tocantes livros» que pudera ler. Mesmo ressalvando o exagero de afirmações tão peremptórias, que mais poderemos querer?

Uma última chamada de atenção para dois aspectos. A capa da edição portuguesa – idêntica, aliás, à da edição da Vintage, mas que não pode comparar-se com a da Chatto & Windus – é muito má, mais parecendo um daqueles cartazes new age utilizados para vender iogurtes light. Já a tradução, da responsabilidade de Lúcia Liba Mucznik, me parece soberba, mesmo sem entender eu uma palavra de hebraico. Nem por um momento o prazer da leitura tropeçou numa palavra ou numa frase, sendo, ao contrário, constantemente excitado por elas. O que é, obviamente, um óptimo sinal.

    Olhares.