Julgo tratar-se de uma doença. Gosto muito, mesmo muito, de cinema, passei uma fase da vida em que, cheio de olheiras mas sempre desperto, via em média uns 10 filmes por semana – antes ainda do surgimento do VHS, se bem me faço entender –, continuo a ver aquilo que posso, mas raramente consigo guardar a memória dos filmes por mais de umas quantas horas. Se não tomo umas notas ou guardo o recorte de alguma crítica que saiu na imprensa, lá se vão as imagens, os sons, as figurinhas a mexer e os «perfumes visuais». Por vezes, sobra um vestígio acessório associado a um artigo que possa ler, a um livro que evoque um certo filme, a um programa de televisão ou a uma passeata pelo You Tube. Dos Dez Mandamentos lembro-me apenas da dureza das cadeiras em madeira do Cineteatro da Figueira e de dar uma volta nos carrinhos de choque antes da sessão. De O Homem que Amava as Mulheres recordo-me só do vislumbre das pernas da Brigitte Fossey (mas já não me lembrava de todo do nome dela). De Saló ou os Cem Dias de Sodoma tenho a exclusiva memória de o ter visto com uma terrível dor de dentes. Isto para falar apenas de recordações com mais de trinta anos. Acho por isso extraordinária a forma como certas pessoas – de João Bénard da Costa, que tem sempre uma referência cinéfila para contar, até uma amiga minha que sabe mesmo dizer quais as condições atmosféricas e com quem foi ao cinema no dia tal do ano xis –, falam de filmes que viram há décadas. Com aquela mesma certeza descritiva que usamos para relatar um encontro da manhã ou a ida ao hipermercado. Invejo-os e acho que a medicina devia procurar uma cura para quem padece deste tipo de esquecimento. Faria da memória das vidas de quem dele padece, ou pelo menos da minha, um território com toda a certeza um pouco mais movimentado.