A Atlântico é, vamos a uma etiqueta, uma revista da direita civilizada e inteligente. Os artigos que publica são quase sempre bem escritos, estimulantes e informativos, mesmo quando partem – e partem quase sempre – de posições culturais nas quais não me revejo e de pontos de vista que rejeito frontalmente. A esquerda portuguesa, que não possui uma única revista de ideias digna da designação, deveria aprender um pouco com experiências como esta, pensando-se a si própria em público, sem preconceitos, sectarismos e medos atávicos, e procurando aproximar-se de um nicho de leitores – composto, chamemos-lhe assim para simplificar, de intelectuais e das suas margens – cujo peso nas sondagens eleitorais é pouco mais que nulo mas possui uma capacidade crítica e uma influência social que transcendem em muito essa pequenez.
O último número da revista, o deste Outubro, contém dois artigos que me interessaram particularmente, mas dos quais, todavia, me apetece discordar. Até porque são assinados por historiadores de quem tenho lido textos exemplares, sobretudo quando nestes eles se ocupam do seu métier. Ambos se apresentam ali, precisamente, com «argumentos de historiador», ao mesmo tempo que escrevem diatribes de uma subjectividade quase total. Mas se ambos os artigos me parecem reprováveis, não é propriamente por causa dessa subjectividade, mas justamente porque se apresentam, aos olhos do leitor, como abordagens objectivas, quando de facto o não são.
O primeiro é de Vasco Pulido Valente e visa uma breve leitura crítica do filme A Vida dos Outros, realizado pelo alemão Florian Henckel von Donnersmarck e estreado em 2006. Por um mero acaso, vi há cerca de duas semanas o DVD. Vi-o com vagar, vi também os diversos extras (que incluem um longo e interessante making of, além de algumas entrevistas um tanto desiguais) e não posso estar mais em desacordo com VPV.
A Vida dos Outros é a história da conversão de Gerard Wiesler, um capitão da Stasi, a polícia política da antiga RDA, e tem como eixo a percepção do confronto entre o mundo triste e carcerário do qual Wiesler era fiel executor, e a vida incerta, mas mais livre e mais humana, daqueles que ele tinha como tarefa perseguir. VPV – que considera o argumento «um melodrama de intelectual adolescente» – parte, na sua leitura, de um princípio que não me parece poder ser assumido pela mesma pessoa que tanto tem feito pela aceitação da dimensão narrativa da história e pela inclusão da ficção como alimento e ferramenta do discurso historiográfico. Indignar-se porque o filme contém sequências que não são historicamente verosímeis é um erro banal, mas que não podia imaginar a ser cometido por ele. Digo o óbvio: o filme não pretende ser uma reconstituição, mas sim uma ficção, e como todas as ficções amplia e manipula pormenores, no sentido de coagir a leitura que o autor propõe. Aliás, von Donnersmarck di-lo abertamente num dos extras do DVD: a vida na RDA, por exemplo, não era tão baça e desolada quanto a imagem das ruas (cinzentas, vazias, infinitamente tristes) pode fazer crer (havia cor, ruído, pessoas nas ruas), ele apenas forçou esse aspecto para adensar o ambiente dramático que pretendia criar.
Mas mesmo colocando-nos no plano da verosimilhança, não entendo como é possível considerar-se a transfiguração do protagonista como «implausível metamorfose». Ou então proclamar, a pés juntos, que jamais existiu ou existirá a possibilidade prática de um «redenção pela arte», uma vez que se assim fosse, argumenta VPV, os oficiais nazis que eram também excelentes músicos, como Heydrich ou Hans Frank, ter-se-iam por certo arrependido rapidamente dos seus crimes. VPV sabe muito bem que estas coisas não se podem prever e que cada caso humano é um caso humano, e se o diz, apoiado até em comparações forçadas e um tanto abstrusas com os agentes da Pide, é porque também tem, por vezes, uma certa vontade de jogar algo arbitrariamente com as próprias palavras. Ou uma recaída – a expressão é utilizada por ele neste pequeno artigo – de «intelectual tardo-adolescente». O que, sinceramente, só lhe fica bem.
O segundo artigo, mais extenso e ambicioso, é de Rui Ramos e tem um título abertamente provocatório: «O desprezo de Che Guevara». Mas a sua leitura terá de transitar para um outro post.