1. Fátima ressurge. Mas o que me preocupa no seu ressurgimento não é a intrusão, na paisagem caótica daquela incaracterística cidade de oito mil habitantes e de não sei quantos milhares de forasteiros, de mais uns quantos edifícios e de uma igreja gigantesca. É a forma acrítica como a comunicação social se extasia – tal como aconteceu com os estádios do Euro – com o seu luxo e dimensão. É a forma passiva como faz reverberar o significado dos acontecimentos de 1917 e da sua leitura pelos poderes instalados após o 28 de Maio. É o modo como a transmissão da «mensagem divina» nos é mostrada como acontecimento e não enquanto construção. A maneira como a ignorância, a superstição e o desespero surgem nas reportagens e nos ecrãs envolvidos numa atitude farisaica de benévola aceitação, de quase cumplicidade. A meu ver, também de crueldade.
2. Os templos católicos são hoje, quase sempre, museus do kitsch. Juntam à sua arquitectura original, imagens toscas, peças avulsas, decorativas, onde predominam rendas e brocados, sedas e tafetás, acessórios electrónicos obsoletos, lâmpadas fluorescentes, alcatifas carmesim, anexos atípicos mandados erguer por um qualquer pároco ou benemérito. Num certo sentido, essa deprimente profusão de objectos sem norte cumpre a sua função sacralizadora, dado o padrão de gosto e a capacidade de elaboração simbólica da maioria esmagadora dos crentes. Por isso, a nova Cruz Alta de Fátima, concebida pelo alemão Robert Shad – e que, sempre optimista, Frei Bento Domingues tanto elogia numa crónica hoje publicada – é de facto, na sua concepção ousada, moderna, um objecto espúrio. Enquanto deambulam pelo terreiro grande da Cova da Iria, dele dizem quase todos os entrevistados que «é uma decepção», «não me diz nada», «não percebo». Poderia ser de outra forma?