Começa enfim a sair dos baús a memória de uma singular «África portuguesa», vivida apenas por algumas comunidades de brancos e de «assimilados». Há cerca de doze anos atrás, quando comecei um projecto destinado a inventariar uma parte desse legado, – projecto depois gorado, por ter surgido fora de tempo e enfrentar obstáculos na altura ainda intransponíveis –, toda aquela vivência permanecia fechada sobre si mesma, inacessível, geralmente envolvida em traumas, medos e rancores. A transposição para os territórios coloniais de determinadas marcas da cultura de regime instalada na «Metrópole» – como o folclore em versão «estado-novista», o fado de salão, a canção ligeira oferecida pelos «melhores artistas da rádio e da TV», os concursos de misses, as corridas de automóveis, os torneios de ténis, o futebol com as camisolas locais do Benfica ou do Sporting – parece-nos hoje, quando espreitamos alguns dos seus ecos na série televisiva de Joaquim Furtado, algo de estranho, de improvável, que jamais terá existido. Mas a verdade é que existiu e o seu rastro não pode, nem deve, ser apagado. Um bom exemplo desse aparente «Portugal de cartolina» é-nos recordado por Joana Lopes num post-documento sobre as Marchas Populares de Lourenço Marques. O «lusotropicalismo prático» em todo o seu esplendor.
Hoje, na sempre animada secção de Classificados do jornal Público, uma cidadã que se descreve a si própria como «senhora da aldeia, desinibida e sem tabus» oferece-se para preencher a sua quota de trabalho socialmente produtivo, traduzido em «sexo sem pressas». A reconversão da população rural parece estar a avançar a todo o vapor, preparando-se para superar as mais optimistas metas do plano quinquenal. E sem stress.
Um dos grandes vícios de uma boa parte dos colunistas «de esquerda» – em alguns dos quais encontro também, para que conste, muitas e boas qualidades – consiste em perderem mais tempo a etiquetar certas pessoas que não partilham dos seus pontos de vista, em metê-las em gavetas, gavetinhas e gavetões, do que a discutir as suas ideias ou a partilhar aquilo que elas (também) fazem de bom, útil ou interessante. Sob este aspecto, lamento ter de reconhecer que uma parte dos fazedores de opinião da «direita» que não é trauliteira tem vindo a comportar-se bastante melhor do que os seus semelhantes do outro lado da avenida.
Isto é particularmente detectável numa parte do universo dos blogues portugueses, dentro da qual absolutamente tudo aquilo que escrevam, digam ou façam pessoas por certo insuspeitas de serem ferozes inimigos do pluralismo como Vasco Pulido Valente, José Pacheco Pereira ou mesmo Pedro Mexia – para não citar mais – é logo reputado como algo que não merece um minuto de atenção, ou que traz com toda a certeza água no bico. Podem oferecer pérolas – e certas vezes oferecem – mas que importa isso? O sectarismo mais anacrónico e o preconceito travestido de uma qualquer «posição de princípio» tendem a eternizar-se. A tacanhez disfarçada de indiferença também. É a vida, dir-se-á. Mas esta vida poderia ser bem melhor. «Mais civilizada», diria, se a expressão não tivesse caído em desuso como sendo… «de direita».
Metade da blogosfera portuguesa anda a bater no pobre líder da Juventude Popular por ter apontado o presidente do Grupo Parlamentar do PCP, Bernardino Soares, como um dos protagonistas dos «distúrbios revolucionários» vividos durante o Verão de 1975. Percebe-se porém a confusão do jovem e ignorante líder centrista: Bernardino tinha na altura apenas quatro anos, mas a verdade é que não parece.
Em L’Atelier de l’Histoire, um texto de 1982, François Furet sublinhou o modo como o aparecimento da «história-problema», que recusa o objecto singular e explica mais do que descreve, teria configurado «um recuo talvez definitivo da história-narrativa» enquanto «reconstrução de uma experiência vivida no eixo do tempo». O mínimo que hoje se poderá dizer é que as notícias sobre essa morte anunciada eram exageradas. A assunção da capacidade narrativa da história apenas recuara um pouco com a crítica instaurada pela Escola dos Annales à excessiva concentração do historiador no acontecimento, e tem provado que passa por ela a possibilidade de o discurso historiográfico ultrapassar as paredes das academias, devolvendo ao passado uma certa forma de vida. Mas esta narrativa não é pura descrição, uma vez que, como escreveu Fátima Bonifácio, ela «não obedece à sequência causal dos acontecimentos inscritos na cronologia; não mostra o desenrolar de uma intriga». Dito de outra forma: ela não se limita, como acontecia na era pré-Annales, a fazer de conta que produz uma «fotografia realista» do passado, procurando antes desenhá-lo a partir do lugar do historiador-narrador. Aquele que concebe o argumento e define a narrativa a partir de um trabalho de investigação metódico, exaustivo e criterioso.
A obra historiográfica de Vasco Pulido Valente é uma das poucas que tem vindo a marcar, entre nós, a presença desta modalidade, combinando a aptidão literária, o talento comunicativo e a dimensão interpretativa com um extenso trabalho de investigação ancorado nas fontes documentais. A par de A Revolução Liberal (1834-36) – Os Devoristas, e de Um Herói Português, Henrique Paiva Couceiro (1861-1944) – e também, num determinado sentido, de Glória – Biografia de J. C. Vieira de Castro –, o recente Ir Prò Maneta. A Revolta contra os Franceses (1808), editado pela Alêtheia, representa um bom exemplo do proveito e das possibilidades desta forma de fazer história.
O autor fixou um claro propósito: contar-nos um período particularmente dramático, e não menos traumático, da história portuguesa da primeira metade do século XIX. E fazê-lo com a clara intenção de superar aquela mitografia que, durante muito tempo, colocou a resistência ao invasor francês como um acto de exclusivo apego à instituição monárquica e à independência da Pátria. Pulido Valente revela-nos com este livro de que forma essa resistência foi levantada com propósitos substancialmente diferentes pelo menos em 1808, no dramático início das incursões napoleónicas marcado pela chegada de Junot. Perante a traição, a cobardia e a inépcia evidenciada pelos velhos sectores dirigentes (incluindo-se nestes a maioria dos militares de carreira), pela ainda incipiente classe média e pela maioria do clero, de início pactuantes em relação ao invasor, foi o «povo», a gente miúda, quem em numerosos locais assumiu o risco da insurreição e sofreu as inevitáveis represálias que lhe sucederam. A este povo, «pescadores, trabalhadores rurais, camponeses, oficiais mecânicos, e um ou outro comerciante pobre ou ínfimo empregado público», associar-se-iam, aqui e ali, «o ocasional alferes, tenente ou capitão de ordenanças ou milícias, o ocasional religioso (secular ou regular) e até, em muito poucos casos, o ocasional magistrado e o raro senhor local, ornado ou não com o prestigioso título de bacharel». No entanto, no início, estes quase sempre apareceram a reboque dos acontecimentos, após reconhecerem a forte «ebulição» do «povo» – voltado não apenas contra os franceses mas contra os «ricos» e os «grandes» que considerava seus cúmplices –, e a necessidade de conterem ou mesmo de enquadrarem esse descontentamento.
Como mostra Pulido Valente, foi pois no contexto de uma tentativa para controlar a violenta sublevação popular contra os franceses e os seus reais (ou imaginários) aliados, e principalmente para evitar os seus excessos, que, progressivamente, parte importante dos sectores mais conservadores da sociedade foi aderindo à resistência, modificando o sentido algo anárquico, ou até com contornos de revolução social, que ela parecia estar a tomar. A «transparente angústia» com a qual, visivelmente, os «grandes» e os «ricos» recebiam o «frenesim» dos seus «inferiores» mostra bem uma tomada de consciência da «precariedade da situação» em que aqueles viviam. Era, pois, preciso sufocar a «vertigem» da plebe, e a melhor forma de o conseguir foi apropriando-se da iniciativa plebeia e canalizando-a, agora sim, para objectivos de defesa do Antigo Regime e de retorno à anterior ordem política que os chefes militares fiéis aos Braganças e aos seus aliados ingleses começavam a parecer consubstanciar.
Tudo isto sobre um território a ferro e fogo, que este livro nos coloca diante dos olhos ao descrever a extrema dureza e a arbitrariedade dos actos de violência que rodearam a presença de Junot. Fosse essa violência exercida pelo povo – que actuava quase instintivamente, sem distinguir claramente os militares invasores dos inimigos internos, invariavelmente classificados como «afrancesados» e «jacobinos» –, ou pelos franceses, que respondiam com a chacina, a pilhagem e a mais completa devastação. Esta foram aplicadas com um particular empenho pelo general Loison, o Maneta, que deixou atrás de si um rastro de sangue capaz de sobreviver na memória colectiva dos portugueses ao longo de sucessivas gerações.
O que este livro deixa particularmente claro, superando na sua formulação o estrito descritivismo da velha história-narrativa, é que da tumultuosa situação criada pelo choque frontal da revolta popular com a intervenção do invasor – o qual deixaria estupefacto o próprio Junot («Que delírio é o vosso, portugueses?») –,acabou por resultar, após a transformação oportunista de muitos colaboracionistas em intransigentes, num reforço da velha ordem social.
Com uma excepção, porém: as peripécias da resistência permitiram também o crescimento da importância de determinados sectores da «classe média», capazes de constituírem uma espécie de área-tampão entre esse povo sem tino, armado de chuços, foices e varapaus, mas de rara coragem e com capacidade para manter uma guerra de guerrilhas que o inimigo francês se mostrou incapaz de enfrentar, e aqueles membros da nobreza e do clero que haviam conservado um posicionamento dúbio. Muitas dessas pessoas, fossem elas funcionários, magistrados, letrados ou oficiais de média e baixa patente, ou mesmo homens de negócios com um forte sentido de oportunidade, viriam, uma dúzia de anos mais tarde, a constituir um dos segmentos decisivos para a vitória da Revolução de 1820. Vasco Pulido Valente não o diz assim, de modo tão linear, mas todo o leitor que leia com atenção este livro absorvente o perceberá com facilidade.
[As palavras deixadas entre aspas mas não em itálico são também colocadas entre aspas pelo autor. Palavras ou frases em itálico são citações retiradas do livro.]
O Miguel tenta aceder a este blogue a partir de Istambul. Avisa-me, um tanto perplexo, de que o não consegue, surgindo no monitor uma estranhíssima informação:
Bu siteye erişim mahkeme kararıyla engellenmiştir.
T.C. Fatih 2.Asliye Hukuk Mahkemesi 2007/195 Nolu Kararı gereği bu siteye erişim engellenmiştir.
Access to this site has been suspended in accordance with decision no: 2007/195 of T.C. Fatih 2.Civil Court of First Instance.
Admito sem problemas que Sócrates receba o fanfarrão Hugo Chávez e lhe dê uma palmada nas costas. Afinal temos muitos compatriotas amedrontados na Venezuela e o gás natural que tem chegado da Nigéria poderá não ser da melhor qualidade. Já me parece patético, e também algo abusivo, que cerca de duas centenas de portugueses ligados principalmente à União de Resistentes Antifascistas Portugueses, à Associação de Amizade Portugal-Cuba, a um certo Comité de Solidariedade com a Venezuela, a alguns sectores da CGTP e por supuesto ao PCP, dêem as boas-vindas ao «revolucionário bolivariano» com palmas, vivas e, imagine-se, canções de José Afonso.
Estive muitos meses sem passar pela Baixa da cidade. Revi-a hoje mais triste, com mais velhos ainda mas sem vendedores de castanhas, com os mesmos barbeiros e os mesmos clientes de barba e cabelo, Harry Potter e as Lições de Direito Fiscal a preencherem as montras das livrarias, chinelos de pano pendurados ao lado das vassouras e piaçabas que sobreviveram ao fim dos Armazéns Amizade, as paragens de autocarro sem passageiros à espera do 24T, cafés que insistem em vender sandes mistas, sumóis e croquetes marados, a Pastelaria Central substituída por uma loja de meias e collants sempre vazia. No ar, um rumor surdo parece antecipar a morte.
A primeira vez que experimentei um sentimento obsessivo de ciúme e um profundo desejo de vingança direccionei-os para a pessoa do Sr. Plemiannikov. Observo o infame sujeito, a rir-se não sei de quê, nesta velha fotografia a preto ebranco. Nunca lhe perdoei as sucessivas afrontas.
Deparamos todos os dias na imprensa escrita com crónicas e notícias que recorrem a informações ou ideias aparecidas em primeiro lugar no universo dos blogues. Ou então são mesmo os títulos de determinados posts que são copiados no acto de denominar certas peças. Este blogue – como muitos outros – foi já premiado por diversas vezes com essa atenção. Sei bem que nem sempre uma boa ideia ou um excelente título ocorrem quando desejamos e, felizmente, a blogosfera permanece um mapa do tesouro (e também do veneno) sujeito a todo o tipo de explorações que possam substituir uma momentânea desinspiração. Aquilo que aborrece não é esse comércio mais ou menos desregrado, que até me parece saudável e ao qual já recorri, mas antes a insistência, por parte de alguns, em praticá-lo de um modo sistemático e sem se darem ao trabalho de identificarem fontes e autorias, colocando as citações que vão fazendo entre as devidas aspas. Talvez valha a pena os autores dos blogues – que nem sequer se fazem pagar pelo seu trabalho, como acontece com os nossos copistas «com orelhas equipadas com radar» – abrandarem um pouco a sua pública generosidade e começarem a apontar o dedo nas situações mais flagrantes.
Creio que a melhor e mais curta sinopse do desaguisado público ocorrido em Santiago do Chile, durante a 17ª Cimeira Ibero-Americana, entre a la majestad arrogante de Don Juan Carlos Alfonso Víctor María de Borbón y Borbón-Dos Sicilias e el compañero parlapatão Señor Hugo Rafael Chávez Frías, foi feita feita pelo Lutz Brückelmann no Quase em Português: «um tipo a responder mal-educado a um tipo mal-educado». Se chamar mal-educado ao coronel, cantor e putativo presidente vitalício corresponde apenas a uma constatação, fazê-lo em relação a um Bourbon de múltiplos e recuados costados, e ademais casado com uma Sophía Margaríta Viktoría Frideríki Glíxbourgk, ou Glucksburgo, da Grécia e Dinamarca, não é para todos.
A História da PIDE, o livro de Irene Flunser Pimentel que constitui uma versão condensada da sua tese de doutoramento e foi agora publicado pela Temas & Debates, vale, entre outros atributos, pela forma criteriosa e documentada como devolve essa sombra da nossa história recente que tende, por vezes, a ser ampliada ou então esbatida. Não, a PIDE não foi uma cópia caseira da Gestapo ou da italiana OVRA, como no-la apresenta uma certa memória heróica da resistência ao fascismo português. Mas não foi também a instituição policial «benévola», quase paternal, que o regime caído em 1974, corroborado por alguns escritos contra-revolucionários posteriores, apresentou como um mero serviço público. O conhecimento da sua verdadeira dimensão e dos seus mecanismos essenciais sai reforçado com esta obra que passa desde já a constituir um instrumento indispensável para uma compreensão adequada de um dos lados mais negros do Estado Novo e do peso dos silêncios e das cumplicidades que ele nos legou.
Este trabalho levanta, no entanto, um problema metodológico que, ao contrário daquilo que se passa por exemplo em Espanha ou na América Latina, se mantém recorrente na historiografia portuguesa contemporânea: o dos entraves colocados à utilização, ou mesmo à validade, do testemunho oral, que a autora entendeu pôr deliberadamente de parte. Utilizou, naturalmente, esse direito de se servir ou não de determinadas fontes documentais que é prerrogativa de todo o historiador. Desde que este justifique essa exclusão, o que a autora fez com clareza na introdução. Mas já me parece bastante discutível a explicação que procura dar das razões pelas quais desqualifica o testemunho oral, por si tomado, essencialmente, como «’provocado’ pelo historiador que, ao interrogar a testemunha, constrói a sua própria fonte, utilizando-a à maneira de um produtor».
Sendo verdade que este problema se coloca, ele requer, justamente, não a desistência, mas um cuidado suplementar da parte desse mesmo historiador, forçando-o a confrontar os testemunhos orais entre si e na relação com outro tipo de fontes, escritas ou não, servindo-se apenas das informações que podem ser aferidas e claramente identificadas. A própria autora reconhece, muito correctamente, que existe hoje uma «profusão de artigos que colmatam a ausência dos que foram esbulhados ou não podem ser consultados». E por «artigos» podemos entender aqui, parece-me, outras fontes que não apenas os materiais provenientes dos arquivos oficiais. Porque não então as fontes orais? Que diferença de valia tem esta por comparação como testemunho pessoal escrito? E, partindo do princípio segundo o qual não passará pela cabeça de ninguém fazer a história do Holocausto e do Gulag sem recorrer aos seus sobreviventes (sejam eles as vítimas ou seus carrascos), por que motivo se coloca a dúvida em determinadas situações e não noutras?
Em «Pela História Oral», publicado no Passado/Presente, Maria Manuela Cruzeiro coloca esta questão naqueles que me parecem ser os seus adequados termos. Aí escreve a dada altura: «não discuto que os documentos orais (exactamente como os escritos) têm que estar sujeitos à crítica, mas não apenas à crítica da comunidade científica, que como a própria história tem abundantemente provado não é imune àquilo que tanto teme e pensa esconjurar: embustes, falsificações ou manipulações». Esta ideia, que exclui uma obsoleta concepção asséptica do trabalho do historiador e abre o leque do espaço de prova, permite-nos relativizar e aferir do grau de falibilidade de todo o tipo de fontes, independentemente do facto destas serem escritas, orais, sonoras ou imagéticas. E ponderar melhor o grau de erro das instâncias legitimadoras que pretendem ditar o grau de verdade que elas podem ou não conter, refugiando-se para tal, por vezes, no restrito recurso ao documento escrito. Um texto de João Tunes sobre este assunto, publicado no blogue Água Lisa, retoma e desenvolve este tema de uma forma que me parece igualmente límpida. Evitando repetir alguns dos seus argumentos, remeto o leitor para a leitura de ambos os textos (que encontra aqui e aqui).
A história oral da qual falo corresponde ao registo, mas também à análise, dos testemunhos orais acerca do passado. E refere-se tanto ao processo de investigação no qual o acto de recordar é suscitado por um entrevistador como aos tipos de escrita baseados na interpretação razoável dessa informação. Ao contrário da tradição oral, que envolve o conhecimento do passado transmitido através das gerações, ela parte de uma narração individual determinada pela experiência, como actor ou figurante, de quem viveu determinados acontecimentos. Tendo-se desenvolvido após o final da Segunda Guerra Mundial, foi nos anos 60 e 70 que sofreu um maior impulso, devido à crescente influência de uma história social cada vez mais preocupada com os sectores e os grupos cuja experiência vinha sendo ignorada, ou reinterpretada, pelos discursos do poder e das elites. Transformou-se então, como lembra a historiadora e filósofa argentina Maria Inés Mudrovcic, «no principal meio para o registo das experiências vividas pelos sectores marginais». Creio ser legítimo que a esta condição de marginalidade possamos associar também as vítimas e os silenciados dos processos de repressão impostos pelos diversos regimes de pendor totalitário, como o foi também o que regeu a sociedade portuguesa até Abril de 1974. E também por eles, ou para eles, a memória transmitida oralmente funcionará como última possibilidade de adquirem voz própria e resistirem ao esquecimento ou à sonegação impostos pelos registos oficiais, venham eles da instituição que os reprimiu, ou mesmo, em determinados casos – que não terão sido poucos – das organizações de oposição que não aceitaram muitos dos seus comportamentos (como aconteceu, por exemplo, com aqueles que denunciaram companheiros sob tortura).
A memória oral, deve ainda reconhecer-se, é sempre particularmente contaminada pelo processo de «reconstrução» ditado pelo grau de subjectividade que ela integra e pela extensão temporal da experiência individual da qual parte. Esta pode tomar como vivido num dado momento aquilo que foi, de facto, acumulado e «reescrito» ao longo de anos. É esse aliás, a par da possibilidade da pura e simples invenção, o principal problema que se coloca ao testemunho oral e aquilo que mais claramente distingue a informação que este oferece daquela que é veiculada pelos documentos escritos, em princípio fixados num determinado momento (por alguém que o produziu com a intervenção da sua subjectividade, evidentemente). Devemos ter consciência dessa dificuldade e agir em conformidade, aproveitando apenas o que pode ser credibilizado por outros processos ou enunciando as nossas dúvidas sempre que estas existam.
Termino num registo que só aparentemente é o da futurologia. Que faremos nós daqui por alguns anos, ou mesmo agora, com a profusão de documentos escritos que, devido ao suporte digital no qual estão a ser depositados, poderão facilmente, ainda que protegidos por senhas de acesso, ser reescritos ou mesmo substituídos? Com uma acta de uma reunião, por exemplo, anteriormente fixada numa leitura parcial mas vertida por uma vez para o papel e hoje guardada num disco duro ou numa pen. Não existe ainda uma resposta cabal para esta pergunta, mas suspeito que os historiadores do futuro – um futuro muito, muito próximo – terão de recorrer aos testemunhos orais (e aos documentos visuais ou híbridos) para tentarem aferir do grau de fiabilidade dessa informação escrita sobre a qual jamais existirão certezas. Esta é, no entanto, uma realidade que transcende um pouco o problema concreto suscitado pelas perplexidades da autora desta excelente História da PIDE.
Um importante esclarecimento de Irene Flunser Pimentel a propósito do valor da história oral pode ser lido aqui.
Tenho evitado referir-me a Purga em Angola, o livro de Dalila Cabrita Mateus e de Álvaro Mateus, editado pela ASA, sobre a história do MPLA e os acontecimentos que envolveram o negro dia 27 de Maio de 1977. Custa-me falar de um assunto doloroso e sobre o qual não posso ser observador imparcial, pois estive em Angola no ano da independência e conheci de perto pessoas que ano e meio depois foram fuziladas, ou desapareceram, ou foram «apenas» presas e torturadas com requintes de barbárie. Jovens quadros como o Mário Rui ou o Armando, que deixaram uma boa posição em Portugal para participarem na construção da sua pátria, militantes anónimos com os quais me cruzei por diversas vezes em missões de apoio logístico ao Movimento, figuras mais conhecidas como o Rui Ramos, da OCA, com quem cheguei a ter, em Luanda, uma reunião vigiada já por agentes da DISA. Sei que, para todas as partes, era aquele um tempo de radicalidade. Eu próprio não era, na altura, propriamente um sujeito razoável. Mas sempre achei que existe um limite moral para o extremismo. E esse limite foi largamente ultrapassado por pessoas como Pepetela, Manuel Rui Monteiro, Luandino Vieira ou Rui Mingas, membros da «Comissão das Lágrimas», que continuam a passear-se por aí, a serem premiados ou apaparicados, com a condescendência de muitos intelectuais portugueses, companheiros seus dos tempos do «reviralho» para quem não passam de uns «gajos porreiros». Seja qual for a posição política que cada um deles possa hoje ter, o grau de culpa que possam ou não sentir, o hábito de eremita que possam até arrastar consigo, aquilo que fizeram jamais será esquecido e dificilmente poderá ser perdoado. Também por isso este livro se torna importante.
Antes que se desdobre por aí a ladainha dos obituários tradicionais (ou as declarações de intenção dos que se obstinam em fazer-nos saber que não estão para essas coisas de acariciar os mortos), um pequeno parágrafo sobre Norman Mailer na data do seu passamento.
De Mailer apenas posso dizer que, como quase toda a gente, pouco mais li que o já amarelecido Os Nus e os Mortos. Que lhe ficamos a dever algumas das primeiras facadas do new journalism. Que dele sobrará um rasto do estereótipo hemingwayano do escritor-macho enquanto provocador, bruto e supostamente femeeiro. Absolutamente anti-norma na relação com o romancista ou com o poeta low-profile que povoa hoje, até à náusea, os suplementos e as revistas literárias. Fazem-nos falta, pois, sacanas assim. Quanto mais não seja para nos irritarmos com eles e aprendermos a relativizar a fala previsivelmente mansa, dócil, de muitos dos outros.
Também eu já quase não utilizo CDs. Enquanto viajo, leio ou escrevo, habituei-me a ouvir música em formato mp3. Ele oferece o isolamento que por vezes procuro em relação ao ruído que perturba, estimulando novas paisagens, criando momentos portáteis de emoção, relaxe ou evasão. Há anos que o velho walkman japonês foi abandonado, trocado por leitores versáteis e ultraleves, dotados de uma qualidade de som e de uma capacidade cada vez maiores. As bandas sonoras que estes permitem criar, tal como o novo tipo de silêncio que a sua interrupção provoca, passaram assim a fazer parte de um dia também ele outro.
A mais recente conquista foi a integração habitual no leitor de programações musicais organizadas sob a forma de podcasts. Já aqui sugeri, há algum tempo atrás, a experiência da Íntima Fracção. Hoje, porque acaba de fazer um ano que passou a estar disponível online para ouvir e descarregar, é a vez de lembrar Miss Tapes, «mixes for blue girls and blue boys», um exercício contemporâneo de liberdade sonora e raro bom gosto da autoria de Hugo Pinto. Aqui fica ainda o seu episódio mais recente (62’40”):
Continua a excelente série sobre a Guerra Colonial que a RTP-1 tem transmitido todas as terças-feiras. Para já, aquilo que ressalta como inegável é o fantástico trabalho de recolha e o esforço de enquadramento histórico dirigido por Joaquim Furtado. Jornalismo de investigação a sério, daquele que só alguém com a sua experiência, o seu perfil e o seu estatuto pode materializar. De facto, detecta-se ali um conhecimento, uma capacidade crítica, uma procura não-ingénua de isenção, uma disponibilização do tempo, um esforço para fazer devagar mas bem, que nem sempre os jornalistas mais novos, e alguns dos da geração de Furtado, sabem fazer ou têm condições para levar à prática.
Entretanto, em termos formais, aquilo que neste momento mais me choca não são os dados sobre as vítimas e os danos ocorridos nos primeiros tempos da guerra em Angola. A maioria deles eram já bem conhecidos. É a forma paternalista como a generalidade dos protagonistas portugueses entrevistados, mesmo pessoas responsáveis como Carlos Fabião, Lemos Pires ou Adriano Moreira, fala dos combatentes africanos e do comportamento das «populações indígenas». Alguns deles não hesitam mesmo em apelidá-los, tanto tempo depois, de «terroristas», ou de considerar muitas dessas pessoas como «levadas ao engano» pela propaganda insidiosa do «inimigo». Em muitos dos testemunhos ainda se pressente a matriz racista, um resto de adrenalina, a marca de exaltação (esforçadamente contida, mas perceptível), que sobra dos momentos de tensão e de bestialidade então vividos. É bom que o programa também mostre isso, claro. Mas tal não deixa de perturbar aqueles de nós que já mataram esses fantasmas.