A História da PIDE, o livro de Irene Flunser Pimentel que constitui uma versão condensada da sua tese de doutoramento e foi agora publicado pela Temas & Debates, vale, entre outros atributos, pela forma criteriosa e documentada como devolve essa sombra da nossa história recente que tende, por vezes, a ser ampliada ou então esbatida. Não, a PIDE não foi uma cópia caseira da Gestapo ou da italiana OVRA, como no-la apresenta uma certa memória heróica da resistência ao fascismo português. Mas não foi também a instituição policial «benévola», quase paternal, que o regime caído em 1974, corroborado por alguns escritos contra-revolucionários posteriores, apresentou como um mero serviço público. O conhecimento da sua verdadeira dimensão e dos seus mecanismos essenciais sai reforçado com esta obra que passa desde já a constituir um instrumento indispensável para uma compreensão adequada de um dos lados mais negros do Estado Novo e do peso dos silêncios e das cumplicidades que ele nos legou.
Este trabalho levanta, no entanto, um problema metodológico que, ao contrário daquilo que se passa por exemplo em Espanha ou na América Latina, se mantém recorrente na historiografia portuguesa contemporânea: o dos entraves colocados à utilização, ou mesmo à validade, do testemunho oral, que a autora entendeu pôr deliberadamente de parte. Utilizou, naturalmente, esse direito de se servir ou não de determinadas fontes documentais que é prerrogativa de todo o historiador. Desde que este justifique essa exclusão, o que a autora fez com clareza na introdução. Mas já me parece bastante discutível a explicação que procura dar das razões pelas quais desqualifica o testemunho oral, por si tomado, essencialmente, como «’provocado’ pelo historiador que, ao interrogar a testemunha, constrói a sua própria fonte, utilizando-a à maneira de um produtor».
Sendo verdade que este problema se coloca, ele requer, justamente, não a desistência, mas um cuidado suplementar da parte desse mesmo historiador, forçando-o a confrontar os testemunhos orais entre si e na relação com outro tipo de fontes, escritas ou não, servindo-se apenas das informações que podem ser aferidas e claramente identificadas. A própria autora reconhece, muito correctamente, que existe hoje uma «profusão de artigos que colmatam a ausência dos que foram esbulhados ou não podem ser consultados». E por «artigos» podemos entender aqui, parece-me, outras fontes que não apenas os materiais provenientes dos arquivos oficiais. Porque não então as fontes orais? Que diferença de valia tem esta por comparação como testemunho pessoal escrito? E, partindo do princípio segundo o qual não passará pela cabeça de ninguém fazer a história do Holocausto e do Gulag sem recorrer aos seus sobreviventes (sejam eles as vítimas ou seus carrascos), por que motivo se coloca a dúvida em determinadas situações e não noutras?
Em «Pela História Oral», publicado no Passado/Presente, Maria Manuela Cruzeiro coloca esta questão naqueles que me parecem ser os seus adequados termos. Aí escreve a dada altura: «não discuto que os documentos orais (exactamente como os escritos) têm que estar sujeitos à crítica, mas não apenas à crítica da comunidade científica, que como a própria história tem abundantemente provado não é imune àquilo que tanto teme e pensa esconjurar: embustes, falsificações ou manipulações». Esta ideia, que exclui uma obsoleta concepção asséptica do trabalho do historiador e abre o leque do espaço de prova, permite-nos relativizar e aferir do grau de falibilidade de todo o tipo de fontes, independentemente do facto destas serem escritas, orais, sonoras ou imagéticas. E ponderar melhor o grau de erro das instâncias legitimadoras que pretendem ditar o grau de verdade que elas podem ou não conter, refugiando-se para tal, por vezes, no restrito recurso ao documento escrito. Um texto de João Tunes sobre este assunto, publicado no blogue Água Lisa, retoma e desenvolve este tema de uma forma que me parece igualmente límpida. Evitando repetir alguns dos seus argumentos, remeto o leitor para a leitura de ambos os textos (que encontra aqui e aqui).
A história oral da qual falo corresponde ao registo, mas também à análise, dos testemunhos orais acerca do passado. E refere-se tanto ao processo de investigação no qual o acto de recordar é suscitado por um entrevistador como aos tipos de escrita baseados na interpretação razoável dessa informação. Ao contrário da tradição oral, que envolve o conhecimento do passado transmitido através das gerações, ela parte de uma narração individual determinada pela experiência, como actor ou figurante, de quem viveu determinados acontecimentos. Tendo-se desenvolvido após o final da Segunda Guerra Mundial, foi nos anos 60 e 70 que sofreu um maior impulso, devido à crescente influência de uma história social cada vez mais preocupada com os sectores e os grupos cuja experiência vinha sendo ignorada, ou reinterpretada, pelos discursos do poder e das elites. Transformou-se então, como lembra a historiadora e filósofa argentina Maria Inés Mudrovcic, «no principal meio para o registo das experiências vividas pelos sectores marginais». Creio ser legítimo que a esta condição de marginalidade possamos associar também as vítimas e os silenciados dos processos de repressão impostos pelos diversos regimes de pendor totalitário, como o foi também o que regeu a sociedade portuguesa até Abril de 1974. E também por eles, ou para eles, a memória transmitida oralmente funcionará como última possibilidade de adquirem voz própria e resistirem ao esquecimento ou à sonegação impostos pelos registos oficiais, venham eles da instituição que os reprimiu, ou mesmo, em determinados casos – que não terão sido poucos – das organizações de oposição que não aceitaram muitos dos seus comportamentos (como aconteceu, por exemplo, com aqueles que denunciaram companheiros sob tortura).
A memória oral, deve ainda reconhecer-se, é sempre particularmente contaminada pelo processo de «reconstrução» ditado pelo grau de subjectividade que ela integra e pela extensão temporal da experiência individual da qual parte. Esta pode tomar como vivido num dado momento aquilo que foi, de facto, acumulado e «reescrito» ao longo de anos. É esse aliás, a par da possibilidade da pura e simples invenção, o principal problema que se coloca ao testemunho oral e aquilo que mais claramente distingue a informação que este oferece daquela que é veiculada pelos documentos escritos, em princípio fixados num determinado momento (por alguém que o produziu com a intervenção da sua subjectividade, evidentemente). Devemos ter consciência dessa dificuldade e agir em conformidade, aproveitando apenas o que pode ser credibilizado por outros processos ou enunciando as nossas dúvidas sempre que estas existam.
Termino num registo que só aparentemente é o da futurologia. Que faremos nós daqui por alguns anos, ou mesmo agora, com a profusão de documentos escritos que, devido ao suporte digital no qual estão a ser depositados, poderão facilmente, ainda que protegidos por senhas de acesso, ser reescritos ou mesmo substituídos? Com uma acta de uma reunião, por exemplo, anteriormente fixada numa leitura parcial mas vertida por uma vez para o papel e hoje guardada num disco duro ou numa pen. Não existe ainda uma resposta cabal para esta pergunta, mas suspeito que os historiadores do futuro – um futuro muito, muito próximo – terão de recorrer aos testemunhos orais (e aos documentos visuais ou híbridos) para tentarem aferir do grau de fiabilidade dessa informação escrita sobre a qual jamais existirão certezas. Esta é, no entanto, uma realidade que transcende um pouco o problema concreto suscitado pelas perplexidades da autora desta excelente História da PIDE.
Um importante esclarecimento de Irene Flunser Pimentel a propósito do valor da história oral pode ser lido aqui.