Em L’Atelier de l’Histoire, um texto de 1982, François Furet sublinhou o modo como o aparecimento da «história-problema», que recusa o objecto singular e explica mais do que descreve, teria configurado «um recuo talvez definitivo da história-narrativa» enquanto «reconstrução de uma experiência vivida no eixo do tempo». O mínimo que hoje se poderá dizer é que as notícias sobre essa morte anunciada eram exageradas. A assunção da capacidade narrativa da história apenas recuara um pouco com a crítica instaurada pela Escola dos Annales à excessiva concentração do historiador no acontecimento, e tem provado que passa por ela a possibilidade de o discurso historiográfico ultrapassar as paredes das academias, devolvendo ao passado uma certa forma de vida. Mas esta narrativa não é pura descrição, uma vez que, como escreveu Fátima Bonifácio, ela «não obedece à sequência causal dos acontecimentos inscritos na cronologia; não mostra o desenrolar de uma intriga». Dito de outra forma: ela não se limita, como acontecia na era pré-Annales, a fazer de conta que produz uma «fotografia realista» do passado, procurando antes desenhá-lo a partir do lugar do historiador-narrador. Aquele que concebe o argumento e define a narrativa a partir de um trabalho de investigação metódico, exaustivo e criterioso.
A obra historiográfica de Vasco Pulido Valente é uma das poucas que tem vindo a marcar, entre nós, a presença desta modalidade, combinando a aptidão literária, o talento comunicativo e a dimensão interpretativa com um extenso trabalho de investigação ancorado nas fontes documentais. A par de A Revolução Liberal (1834-36) – Os Devoristas, e de Um Herói Português, Henrique Paiva Couceiro (1861-1944) – e também, num determinado sentido, de Glória – Biografia de J. C. Vieira de Castro –, o recente Ir Prò Maneta. A Revolta contra os Franceses (1808), editado pela Alêtheia, representa um bom exemplo do proveito e das possibilidades desta forma de fazer história.
O autor fixou um claro propósito: contar-nos um período particularmente dramático, e não menos traumático, da história portuguesa da primeira metade do século XIX. E fazê-lo com a clara intenção de superar aquela mitografia que, durante muito tempo, colocou a resistência ao invasor francês como um acto de exclusivo apego à instituição monárquica e à independência da Pátria. Pulido Valente revela-nos com este livro de que forma essa resistência foi levantada com propósitos substancialmente diferentes pelo menos em 1808, no dramático início das incursões napoleónicas marcado pela chegada de Junot. Perante a traição, a cobardia e a inépcia evidenciada pelos velhos sectores dirigentes (incluindo-se nestes a maioria dos militares de carreira), pela ainda incipiente classe média e pela maioria do clero, de início pactuantes em relação ao invasor, foi o «povo», a gente miúda, quem em numerosos locais assumiu o risco da insurreição e sofreu as inevitáveis represálias que lhe sucederam. A este povo, «pescadores, trabalhadores rurais, camponeses, oficiais mecânicos, e um ou outro comerciante pobre ou ínfimo empregado público», associar-se-iam, aqui e ali, «o ocasional alferes, tenente ou capitão de ordenanças ou milícias, o ocasional religioso (secular ou regular) e até, em muito poucos casos, o ocasional magistrado e o raro senhor local, ornado ou não com o prestigioso título de bacharel». No entanto, no início, estes quase sempre apareceram a reboque dos acontecimentos, após reconhecerem a forte «ebulição» do «povo» – voltado não apenas contra os franceses mas contra os «ricos» e os «grandes» que considerava seus cúmplices –, e a necessidade de conterem ou mesmo de enquadrarem esse descontentamento.
Como mostra Pulido Valente, foi pois no contexto de uma tentativa para controlar a violenta sublevação popular contra os franceses e os seus reais (ou imaginários) aliados, e principalmente para evitar os seus excessos, que, progressivamente, parte importante dos sectores mais conservadores da sociedade foi aderindo à resistência, modificando o sentido algo anárquico, ou até com contornos de revolução social, que ela parecia estar a tomar. A «transparente angústia» com a qual, visivelmente, os «grandes» e os «ricos» recebiam o «frenesim» dos seus «inferiores» mostra bem uma tomada de consciência da «precariedade da situação» em que aqueles viviam. Era, pois, preciso sufocar a «vertigem» da plebe, e a melhor forma de o conseguir foi apropriando-se da iniciativa plebeia e canalizando-a, agora sim, para objectivos de defesa do Antigo Regime e de retorno à anterior ordem política que os chefes militares fiéis aos Braganças e aos seus aliados ingleses começavam a parecer consubstanciar.
Tudo isto sobre um território a ferro e fogo, que este livro nos coloca diante dos olhos ao descrever a extrema dureza e a arbitrariedade dos actos de violência que rodearam a presença de Junot. Fosse essa violência exercida pelo povo – que actuava quase instintivamente, sem distinguir claramente os militares invasores dos inimigos internos, invariavelmente classificados como «afrancesados» e «jacobinos» –, ou pelos franceses, que respondiam com a chacina, a pilhagem e a mais completa devastação. Esta foram aplicadas com um particular empenho pelo general Loison, o Maneta, que deixou atrás de si um rastro de sangue capaz de sobreviver na memória colectiva dos portugueses ao longo de sucessivas gerações.
O que este livro deixa particularmente claro, superando na sua formulação o estrito descritivismo da velha história-narrativa, é que da tumultuosa situação criada pelo choque frontal da revolta popular com a intervenção do invasor – o qual deixaria estupefacto o próprio Junot («Que delírio é o vosso, portugueses?») –, acabou por resultar, após a transformação oportunista de muitos colaboracionistas em intransigentes, num reforço da velha ordem social.
Com uma excepção, porém: as peripécias da resistência permitiram também o crescimento da importância de determinados sectores da «classe média», capazes de constituírem uma espécie de área-tampão entre esse povo sem tino, armado de chuços, foices e varapaus, mas de rara coragem e com capacidade para manter uma guerra de guerrilhas que o inimigo francês se mostrou incapaz de enfrentar, e aqueles membros da nobreza e do clero que haviam conservado um posicionamento dúbio. Muitas dessas pessoas, fossem elas funcionários, magistrados, letrados ou oficiais de média e baixa patente, ou mesmo homens de negócios com um forte sentido de oportunidade, viriam, uma dúzia de anos mais tarde, a constituir um dos segmentos decisivos para a vitória da Revolução de 1820. Vasco Pulido Valente não o diz assim, de modo tão linear, mas todo o leitor que leia com atenção este livro absorvente o perceberá com facilidade.
[As palavras deixadas entre aspas mas não em itálico são também colocadas entre aspas pelo autor. Palavras ou frases em itálico são citações retiradas do livro.]