Há 39 anos, precisamente na manhã do dia 17 de Abril de 1969, teve lugar em Coimbra o episódio que levou ao rubro o conflito conhecido na história e na memória do movimento estudantil português como «a crise de 69». Nos anos que se seguiram, mas principalmente após a instauração da democracia, a data passou a ser celebrada como um momento de profundo significado simbólico para a vida associativa coimbrã, a sua autonomia e o seu impacto no país. Porém, tal como acontece com todas as celebrações que não são acompanhadas de uma atitude crítica e interpretativa que as explique e actualize, esta lembrança tem vindo a transformar-se num ritual, integrando discursos pontuados por clichés, e até a exibição repetitiva de alguma iconografia, cuja leitura se revela progressivamente limitada. Principalmente para as novas gerações, mas também para muitos daqueles que participaram daquele «evento fundador» e que de forma alguma se revêem na dimensão litúrgica e celebratória da sua evocação.
Esta redutora simplificação vai-se tornando perceptível durante a leitura de A Tradição da Contestação. Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo, de Miguel Cardina (MC), que a Angelus Novus acaba de editar. Resultante da tese de mestrado que o autor defendeu em 2005 mas entretanto actualizou, este livro cumpre desde logo uma importante função: bem documentado e reflectido, ajuda-nos a diluir algumas formas de ver o movimento estudantil, desde os finais da década de 50 até 1974, mas em particular durante os anos da governação marcelista, que são imperfeitas porque fundadas em leituras do passado mais apoiadas em generalizações e no rastro nostálgico de determinados momentos do que no estudo e na reflexão crítica.
Contribui também para mostrar de que forma narrativas pré-formatadas do passado do movimento têm servido como instrumento destinado a evocar instantes e gestos reputados como exemplares ou heróicos (como é o caso do referido episódio do 17 de Abril), que promovem um território de legitimidade e de reconhecimento público adequado à aceitação dos processos reivindicativos e das vozes do associativismo estudantil no presente. Deste modo, pode dizer-se que este livro relativiza uma leitura passiva, que reduz o movimento estudantil à evocação oficial de determinadas datas, limpando-o da poeira comemorativista que tende a esvaziá-lo da sua complexidade ou a transformá-lo numa caricatura de recorte mais ou menos nostálgico.
Este problema é visível no processo de hipervalorização, aqui comentado, da «crise de 69». Não se contesta que esta tenha correspondido a um momento central da história do movimento estudantil português e que foi decisiva para o aprofundamento do processo de decadência e crise do regime que desabou em Abril de 1974. No entanto, ela tem sido vezes de mais anotada como um «acontecimento em si», espécie de clímax antes do qual dominara o conformismo e depois do qual se estabelecera uma fase de refluxo, ou de esmorecimento, da iniciativa estudantil, que, de acordo com essas leituras, teria sido apanhada algo adormecida pela Revolução dos Cravos.
A verdade, mostra MC, é que o período que preparou a «crise», a «crise» em si, e os anos que se lhe seguiram, estabeleceram antes um continuum que incorporou, entre outros aspectos, transformações vivenciais (com a rápida desvalorização das praxes académicas), alterações culturais (com uma abertura rápida aos valores comuns à cultura juvenil internacional dos anos 60), e principalmente um alargamento muito grande da participação cívica estudantil, crescentemente politizada no sentido de integrar o activismo e as suas reivindicações nos processos mais gerais de transformação da sociedade portuguesa da época e na sua própria vida. A Tradição da Contestação mostra assim, com nitidez, que a «crise» não correspondeu ao apogeu do movimento, mas antes a um momento de mudança e de viragem.
De facto, a rápida e acentuada politização, notada sobretudo junto dos universitários comunistas e da esquerda radical – que apesar de ilegalizada e minoritária desenvolvia uma intervenção cada vez mais notória -, mas também entre os estudantes comuns, maioritariamente empurrados para um lugar de visível oposição ao regime e à sua guerra colonial, constituiu um das marcas mais salientes do movimento nos anos de 1971/1974, que MC aborda com particular detalhe. Essa politização extrema, associada a factores como o encerramento compulsivo da AAC, levou à perda de relevância da intervenção de índole essencialmente associativa, e formalmente reformista, que até essa altura dominara a actividade reivindicativa estudantil, traduzindo também o aprofundamento de um clima geral de desafectação em relação ao que restava do Estado Novo e aos seus intérpretes. Clima do qual apenas era possível excluir os então ultraminoritários sectores da direita estudantil.
Foi também ao longo destes anos estudados por MC que foram chegando os ecos do Maio de 68, traduzíveis em influências bastante mais amplas do que aquelas materializadas apenas no comprometimento político ou no revigoramento da reivindicação estudantil. Se é verdade que os acontecimentos de França ecoaram rapidamente no ambiente universitário de Coimbra – como ecoaram por quase todo o mundo – foi apenas nos anos seguintes que o sentido mais profundo do movimento, traduzido num recuo da esquerda ortodoxa, na visibilidade da extrema-esquerda e na construção de uma nova abordagem da política, da cultura, da moral e dos estilos de vida entre os sectores estudantis universitários, chegou a Portugal, e particularmente a Coimbra. E é esta mudança que MC mostra de uma forma aliciante.
A Tradição da Contestação evoca ainda uma imagem estereotípica da cidade de Coimbra, onde a palavra «tradição» se continua a cruzar com algumas referências recolhidas de um passado mais ou menos remoto, mas remete também para os ecos de uma vida estudantil até há bem pouco tempo ainda essencialmente masculina e boémia, feita de hierarquias, de praxes académicas e de formas inócuas de uma autoproclamada «irreverência», que nunca chega a sê-lo quando não assume uma dimensão participativa. Este livro mostra-nos que, afinal, existe também uma outra tradição possuidora de lastro histórico, provindo pelo menos da época das lutas liberais mas acentuado nos anos 50 e 60 do século XX, que é a da intervenção activa. Revela-nos uma outra Coimbra, mais plural, emancipada da imagem do lente inquisidor e do estudante truculento, mergulhada numa tradição de cidadania que integra o património identitário da própria cidade.
O livro de Miguel Cardina funciona pois como uma lição que os actores e os agentes da Coimbra de hoje não devem deixar de conhecer. E mostra a todos os leitores que, na história do movimento estudantil, como na história de qualquer movimento social, os episódios sonantes, por mais visíveis e mediáticos que se mostrem, representam apenas a ponta do iceberg.