Pertenço a uma das várias gerações que viveu a infância atormentada por dois demónios. Um era o bicho-papão, essa espécie de monstro barrigudo e de voz cava que se passeava pelos telhados e perseguia os meninos que não comiam a sopa toda. O outro era o polícia-mau, designação que sempre achei redundante antes de saber que coisa é uma redundância, uma vez que no meu universo visível não existiam polícias-bons. Por isso ainda hoje, apesar de todas as operações de cosmética, dos agentes bronzeados e com patilhas recortadas, das agentes perfumadas e com pequenas tatuagens – ou talvez um piercingzinho sabe-se lá onde -, de todo o simpático arsenal de «por-favores» e de «com-licenças» que as forças da ordem utilizam para com a maioria dos cidadãos, há uma sineta que vibra em mim sempre que contacto um polícia. Talvez seja o meu anjo da guarda libertário que não dorme e me sussurra que devo suspeitar de qualquer uniforme engomado ou de um cassetete à cintura. Por isso achei hoje um pouco suspeita a conversa de um polícia suíço que falava à televisão portuguesa do carácter très, très, très «pacato e ordeiro» dos emigrantes que andam pelas ruas de Genève e de Neuchâtel a gritarem vivas à selecção. Conhecendo alguns dos comportamentos de muitos dos nossos emigrados nos países de acolhimento, sobretudo na Europa, parecem-me elogios a mais e fazem-me evocar o medo atávico do polícia no qual, tal como eu, muitos deles foram criados. Que gritem todos os vivas e cantem A Portuguesa as vezes que quiserem, que toquem buzinas e se maquilhem a verde-vermelho, mas que depois, passado o Euro-2008, não regressem à vil obscuridade e à dimensão «pacata e ordeira» de quem não faz valer no quotidiano os seus direitos sociais e políticos. Um desejo que é uma quimera, bem sei. Mas não custa nada lembrar-nos de que podemos concebê-lo.