Tal como muitos outros gadje, mais ou menos instruídos e ciosos de exotismo, que até um passado recente recolheram, a ocidente, a tradição iluminista de deferência por quem nos chegava do Levante, partilhei um dia uma certa atracção pela figura, supostamente misteriosa e refractária, do cigano. O retrato de Carmen, a tabaqueira sedutora de Mérimée e de Bizet, como a silhueta da beldade dançante de flamenco, a «linda cigana», reproduzida nos maços de Gitanes que fumei aos milhares ou em quadros decorativos para as paredes da classe média da província, acompanhavam, a par do interesse menos comum por algumas das Rapsódias Húngaras de Liszt ou pela guitarra de Django Reinhardt tocando Les Yeux Noirs, a atracção quase atávica por esse universo paralelo que imaginava livre e feliz. E fazia esquecer o rasto de pobreza, fedor, lixo e desolação deixado pela maioria dos ciganos que conhecia.
Talvez seja nessa romantização orientalista e partilhada da figura do cigano, ou da sua cultura própria – associada a uma absolutização dos valores da solidariedade para com os humilhados e os diferentes -, que reside a origem de um certo desinteresse de alguns dos defensores do Estado social pelos destinos das comunidades romani. Em Portugal, muito mais que em Espanha ou em França, onde uma presença e uma tradição cultural afirmativa empurraram as populações nómadas, ou recém-sedentarizadas, para outro patamar de visibilidade social, essa idealização e essa displicência conduziram a uma situação dramática. Saber, seguindo os dados publicados no Expresso, que, entre os cerca de 50 milhares de ciganos portugueses apenas existem 4 licenciados, e que 35.000 deles recebem o Rendimento Social de Inserção (o que não impede uma parte significativa de se dedicar à mendicidade), não pode deixar-nos apenas atónitos: deve deixar-nos também tristes pelo espectáculo de miséria humana que apenas os focos mediatizados de exclusão, de racismo ou de violência, e os relatórios da PSP e da GNR, tornam visível. E não nos venham dizer que é lá com eles e com a sua cultura extravagante, resistente e persistentemente «admirável». É preciso fazer mais, muito mais. De um modo fraterno mas também com firmeza. Ouvindo e falando.
P.S. em 28.Jul.2008 – Se as afirmações de um dos fundadores da União Romani Portuguesa e do coordenador do gabinete de apoio às comunidades ciganas junto do Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural, transcritas hoje pelo Público, captam a essência das suas declarações ao jornal, estamos perante um bom exemplo de atitudes que mostram uma preferência por conhecer ou compreender a «admirável» diferença, ou mesmo por atribuir apenas a um dos lados a culpa da «guetização», em vez de promoverem condições para uma afirmação conjugada da integração, da afirmação identitária e da valorização desta minoria no âmbito da nossa vida colectiva.