A vila de Ansião – velhas placas indicativas ainda lhe chamam «Ançião» – situa-se numa das regiões mais deprimidas do país. Refiro-me a uma área situada a norte do distrito de Leiria, que começa a leste do concelho de Pombal, onde o mar já fica longe demais para dele se sentir o odor, e se estende depois por essa mancha verde-escura, chamada «do pinhal», que segue até à serra da Lousã e se prolonga a nordeste pelos distritos de Coimbra e Castelo Branco. Apesar da melhoria das estradas e de alguns esforços no sentido de contrariar a desertificação que ali se iniciou com a emigração rural da década de 1960, trata-se de uma região que permanece sem perspectivas de desenvolvimento visíveis, assente ainda numa agricultura de subsistência que tende a desaparecer, no pequeno comércio que não pode concorrer com os hipermercados mais próximos e em serviços quase inteiramente dependentes do Estado ou das autarquias. Existem tentativas para inverter o processo, algumas delas a partir de expectativas criadas por um turismo incipiente, mas o panorama não é animador, persistindo a fuga de muitos habitantes para os centros populacionais maiores, onde a vida é menos monótona e talvez exista mais emprego. Nada de estranho, como é sabido, uma vez que esta é uma tendência que segue a de outros países europeus nos quais a concentração urbana se iniciou mais cedo, transformando áreas outrora prósperas em autênticas no man’s land.
Mas porquê individualizar aqui Ansião? Porque foi ali que Cavaco Silva inaugurou ontem, com a inevitável pompa assegurada pela ordem unida da valorosa corporação de bombeiros e pela vestimenta de ver-a-Deus das autoridades nativas, um «Centro de Negócios» (sic), «com serviços de apoio ao tecido empresarial de todo o concelho», no qual se esturraram dois milhões de euros. O carácter megalómano e absurdo da empresa parecerá óbvio a qualquer pessoa com a cabeça fria e sem interesses no projecto. Ela terá resultado, ainda admito, de um esforço que a autarquia – falha talvez de alternativas, mas com orçamentos razoavelmente generosos associados a fundos comunitários – rápida e facilmente acarinhou. Mas é dramático não parecer existir uma voz audível, e com capacidade de intervenção, que pudesse ter impedido um disparate destes. Que possa impedir desatinos desta grandeza.
Como todos sabemos, o país está, aliás, repleto de situações análogas. «Parques industriais» sem um plano de ocupação, «centros de congressos» ao abandono, «centros culturais» sem uma actividade estruturada, «auditórios» sobredimensionados, «museus» semi-vazios ou organizados sem critério, «bibliotecas» razoavelmente equipadas mas sem dinamismo, «pavilhões gimnodesportivos» excessivos para as necessidades locais, tantas vezes projectados sem norte, sem uma clara política de gestão e sem uma programação que lhes dê sentido, sem quadros até que os saibam orientar. E gastando milhares de milhões, muitos milhares de milhões. Para não falar das praças, rotundas e avenidas tantas vezes desnecessárias (uma queixa estafada dos eternos maledicentes, como é sabido), ou das estátuas e esculturas quase sempre de mau ou deplorável gosto, erguidas muitas das vezes apenas para alimentar a vaidade dos pequenos nabucodonosores locais ou para assombrar o povo com a magnitude do seu poder. Claro que existem algumas obras de mérito e de utilidade, e não serão poucas, mas a regra ainda é o desleixo, a inadequação e o despesismo.
Entendo perfeitamente que, a estas coisas, os governos e os partidos que são alternativa de poder, habitualmente com um discurso público sobre o rigor financeiro, façam ouvidos de mercador. Uma grande parte destas iniciativas parte afinal das suas clientelas, e assegura muitas das vezes – panis et circencis – a manutenção local de um score eleitoral favorável. Digamos que sob uma determinada perspectiva não se trata de desperdício financeiro, mas antes de um bom investimento político. E daqui por mil anos, quando desenterrarem toda esta parafernália de cimento, aço e betão, os arqueólogos do século XXXI pensarão ter encontrado vestígios de uma época de singular prosperidade. Embora dominada por um gosto algo duvidoso.