Ainda sobre aquilo a que chama «o episódio Kundera», F. Guerra contesta, em O Vermelho e o Negro, as posições de alguns bloggers. Uma delas a minha. No essencial, parece começar por defender uma bússola moral absoluta, relativa a traços do carácter individual, que seria inerente à condição do escritor, ou do artista, e deveria orientá-lo em todas as situações. O essencial do seu argumento centra-se, porém, na tentativa de aproximar aquilo que, sinceramente, não me parece aproximável se não forçarmos um pouco a nota. Para o efeito confronta o caso Kundera com o vivido por Elia Kazan, procurando mostrar como o pulha de um delator o é sob quaisquer circunstâncias, e como nos Estados Unidos da pior fase da Guerra Fria não ocorreram, «em nome da América», canalhices menores e menos justificáveis que sob os ambientes de denúncia «ao serviço da classe operária e de todo o povo» presentes no universo do socialismo real.
Não posso deixar de ver com algumas reservas esta comparação. Claro que o ambiente da «caça às bruxas» em Hollywood foi terrível, opressivo, levando inúmeras pessoas a delatar o nome de colegas, conduzindo outras à ruína ou ao suicídio. Provavelmente fizeram-no pensando que tal lhes favoreceria (ou pelo menos não lhes prejudicaria) a carreira, o que por vezes aconteceu. É sobre isto The Front (O Testa de Ferro), o filme-documento de Woody Allen estreado em 1976. Mas também deram a cara, na mesma altura, figuras com a maior visibilidade pública como Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Danny Kaye ou John Huston, que foram capazes de empenhar o seu nome e a sua segurança para limparem a América da paranóia mccarthista, dando um exemplo de coragem e rectidão. Além de que não falamos, neste caso, de um sistema repressivo construído como tal, mas sim de uma situação de coerção psíquica e económica, que já então se mostrava, aos olhos de muitas pessoas honestas, como uma arbitrariedade.
No caso checo, como em outros casos do «socialismo real», ou mesmo dos diferentes fascismos, falamos da crença generalizada num destino histórico, concebido como salvífico e imortal, apresentado como capaz de revelar definitivamente aquilo que separa o bem do mal. E este destino conheceu, na época de afirmação dos sistemas de coacção totalitária, uma fase de simpatia que mobilizou muitíssimas pessoas. A Kundera também? Talvez. Dizem que sim, parece que sim. Provavelmente mais uma folha para a história universal de ignomínia.