Versão de um texto publicado originalmente na revista LER
Como experiência, destino e utopia, o ideal comunista possui uma história poucas vezes apoiada por narrativas abrangentes e razoavelmente isentas. Esta obra de Robert Service, escrita sensivelmente ao mesmo tempo que a trilogia biográfica de Lenine, Estaline e Trotsky, esforça-se por preencher essa ausência. Da sua tentativa de traçar um panorama da mais importante, dinâmica e persistente corrente política dos últimos cem anos resultou um trajecto enumerativo que começa no comunismo pré-marxista e vai até ao embrionário «socialismo do século XXI», mantendo como eixo a Revolução de Outubro e a transformação da União Soviética em exemplo e estímulo de um alcance planetário. Capítulos que basicamente resumem informação conhecida convivem, no entanto, com outros nos quais se notam um maior investimento do autor e também algumas novidades. É o que acontece quando mostra como os bolcheviques se lançaram ao assalto do poder sem uma matriz para a nova ordem a criar, como foram enunciadas as primeiras divergências teóricas em relação ao template estalinista do «marxismo-leninismo», como se organizou a propaganda pró e anticomunista durante a Guerra Fria, ou como foi o modelo soviético reproduzido no pós-guerra, durante a rápida mas complexa fase de construção das «democracias populares».
O esforço de síntese é notável, e de um ponto de vista informativo parece conseguido, transformando este livro numa útil introdução à história geral do comunismo. Ele deve, todavia, ser mediado por uma atitude crítica atenta e contínua, uma vez que a nítida aversão do autor aos valores do comunismo interfere na objectividade e até na clareza de diversos passos. Pior, ela tê-lo-á afastado de uma compreensão aprofundada da génese social, filosófica e ética do ideal comunista e da eventual perpetuidade da sua capacidade de atracção. É verdade que Service admite, de início, que um dos seus intentos é responder à dúvida de décadas sobre a natureza «inerentemente despótica» ou «potencialmente libertadora» do comunismo, mas concentra-se sobretudo no primeiro dos aspectos, dando pouca atenção ao segundo, justamente aquele que potencia a capacidade de atracção e de mobilização daquele ideal. Em consequência, sugere que o carácter perverso de algumas das práticas dos comunistas – no poder ou fora dele – os afasta de todo de um papel positivo nos processos de edificação democrática e lhes retira até legitimidade na sua participação no combate social, apontando-os como vírus maligno que «provou ter características metastizantes» e continuará a viver mesmo após o desaparecimento do último Estado socialista. O que contraria a prometida isenção desta obra, ainda assim, dada a falta de alternativas acessíveis, de utilidade. Uma nota negativa adicional para a perceptível imperfeição da tradução e da fixação do texto, infelizmente muito comum, como é sabido, nas obras editadas pela Europa-América.
Robert Service, Camaradas. Uma História Mundial do Comunismo. Tradução de Fernanda Oliveira. Publicações Europa-América, 568 págs. ISBN: 978-972-1-05928-3