Para Frantz Fanon, os «condenados da Terra» não se insurgem apenas contra a miséria e a fome, mas também contra a contínua humilhação a que são submetidos. A sua lição não foi no entanto assimilada por aqueles a quem, no que ainda há pouco tempo era o território do Estado-Providência, competia assegurar a moderação dos desequilíbrios sociais e a integração daqueles que eram empurrados para a exclusão. Então, quando a ira coletiva sobrevém, os obstáculos a desmantelar pelos revoltados não podem ser escolhidos de forma racional. Quando fala das condições de emergência nas sociedades contemporâneas de uma nova forma de guerra civil, Hans Magnus Enzensberger relembra trechos de uma destruição que se revela exprimindo «a raiva pelas coisas intactas, o ódio a tudo aquilo que funciona.» Pelo caminho dessa rebelião em estado puro, geralmente praticada em horda, tudo é reduzido a escombros: o mobiliário das salas de aulas é destruído, os pneus são furados, os automóveis incendiados, os sinais de trânsito inutilizados, os jardins ficam cheios de fezes e de urina, os telefones de emergência são inutilizados com alicates, as vidraças das pequenas lojas são partidas à pedrada, os quiosques são assaltados, grafitti cobrem as paredes com frases que se amontoam e se anulam umas às outras. É verdade que, muito provavelmente, a maioria não quer a destruição, mas, como nota ainda Enzensberger, «a maioria é muda, ninguém lhe presta atenção, sempre que tem oportunidade vira as costas à luta e foge». Refugia-se então nos seus lares, por detrás dos monitores onde se reproduz, a uma distância segura, o tumulto que ficou na rua. E esfrega as mãos de contentamento, imaginando que lhe escapou.
E então aquilo que está a acontecer na Grécia poderá acontecer em Portugal? Claro que sim, que pode. Como, aliás, já tem acontecido, ainda que em escala desigual, em França (onde a revolta juvenil atingiu a maior dimensão antes da deflagração grega), na Itália, no Reino Unido ou na Alemanha. A sociedade fundada nos mecanismos supostamente oleados da economia de mercado, que os partidos do arco do poder continuavam até há pouco a cantar como ante-sala de um tempo paradisíaco de harmonia e abastança, tem vindo a produzir os seus monstros, e tem sido a juventude – não por ser «mais generosa» no combate, mas porque sente diretamente na pele as novas e precárias condições de existência à disposição das maiorias espoliadas – o primeiro sector social a dar-lhes um rosto. A teoria da substituição do proletariado pelos jovens, sobretudo pelos jovens urbanos, enquanto agentes dinamizadores das mudanças revolucionárias, adquire então, em tal contexto, um novo impulso e um novo sentido. Não tanto, como se pensava nos anos 60, por estes assumirem uma espécie de papel da vanguarda consciente de uma mudança política que se considerava ser possível prever, mas porque, nas sociedades pós-industrializadas e nas suas periferias, eles são os primeiros a experimentarem uma situação que tende a tornar insuportável a sua existência. Que os pode condenar à ira sem quartel. A vertigem da violência destaca-se então no horizonte de quem está desempregado ou vive de um qualquer trabalho precário, de quem estuda sem a esperança de uma actividade profissional condigna e condizente com os seus interesses, de quem enfrenta um apelo ao consumo não compatível com a disponibilidade económica, de quem é completamente impedido de ter voz e de participar das decisões, de quem vive humilhado e não sabe como deixar de viver dessa maneira.
Não se trata de ficar a olhar as imagens da guerra civil nas ruas de Atenas, Salónica, Ioanina, Creta ou Patras, prevendo como próxima a «crise final do capitalismo», ou a evidência da morte de um «neoliberalismo moribundo», delirando mais ou menos abertamente com a dimensão estética da revolta de rua, esperando que ela arraste atrás de si «as massas de oprimidos» para um destino revolucionário que ninguém sabe qual possa ser. Ou então queixando-se da «modorra» dos jovens que, pelo resto da Europa, não têm reproduzido o exemplo dos seus colegas gregos. Bem pelo contrário, será muito mais prudente encarar os motins como um indício do que de pior pode estar para vir se os grandes decisores não percebem a possibilidade de um rápido retorno ao «estado de natureza» do qual falava Thomas Hobbes, à mais irrefreável luta de todos contra todos, a uma «guerra do fogo» no interior de sociedades que se regem apenas pelos ditames do mercado reduzindo a maioria dos cidadãos, e de maneira particularmente inquietante os mais jovens deles, a peças descartáveis. Uma profunda preocupação – provada através de medidas claras e rápidas, e não limitada a piedosas declarações de intenção – com políticas sociais e com o cuidado para com os menos protegidos é indispensável para que se não retorne rapidamente a esse estado primitivo de barbárie nos quais os novos condenados da Terra teriam, em primeiríssimo lugar, de lutar pela mais elementar sobrevivência. Primeiro na rua e depois casa a casa.