A guerra não é um grande momento para subtilezas e elegâncias, salvo para quem, numa confortável posição de segurança, dela se queira servir como de um tabuleiro de xadrez. Quando a vida e a morte se confrontam, quando o medo e a impiedade se olham de frente, é impossível pensar com ponderação e falar serenamente. Qualquer pessoa sabe disso, mas sabe-o melhor quem já esteve sob fogo em teatro de guerra. Nesses momentos a linha que separa coragem e cobardia, o júbilo e o lamento, frieza e descontrolo, torna-se invisível, e qualquer um, em poucos segundos, pode passar de cordeiro a lobo. Ou o contrário. Na guerra que vivi, pude ver homens religiosos dispararem sobre crianças (e vi depois essas crianças mortas), seres que me habituei a reconhecer como pacíficos a perderem totalmente a compostura e a chorarem como bebés. E o contrário também: pessoas em quem nem tinha reparado que, num repente, foram buscar forças e coragem a um lugar desconhecido. Nestas alturas, todos dizem o que lhe vem à cabeça, gritam ou ficam imobilizados, disparam à toa ou foge, fazem juras de ódio que podem tornar-se letais quando transportam ao ombro uma espingarda-metralhadora.
Mesmo longe desses lugares terríveis, olhando-os nos monitores coloridos das nossas televisões e dos nossos computadores, esse envolvimento emotivo assalta-nos o raciocínio, torna-nos cegos e impulsivos, sendo preciso algum sangue-frio para conseguir discorrer sem levantar a voz sobre aquilo que vemos. Tarefa quase impossível, como se pode ver pelos posts que lemos sobre a guerra terrível que ocorre em Gaza, com quase todos a escreverem frases com pontos de exclamação, tomando um e outro dos lados em confronto, guardando para melhores dias a possibilidade de se questionarem sobre tudo aquilo que podem ver. Claro que os completos consensos jamais serão possíveis e que sempre existirão pessoas para quem o mundo é apenas branco-alvo e preto-carvão: essas só gritam contra a guerra porque um dos lados da brutalidade nela leva a melhor, mas anseiam pelo dia da vingança, no qual agredirão o agressor. Hoje, numa viagem matinal pela blogosfera lusitana, encontrei até um texto que compara aos nazis os responsáveis palestinianos da Fatah que se opõem ao Hamas. Outro identifica «inequivocamente» a causa da Palestina com um sinal do avanço do «fundamentalismo islâmico». Outro ainda diz da violência israelita ser esta «pior que o Holocausto». E a maioria dos comentadores, mesmo alguns dos mais clarividentes e respeitados, vê apenas a agressão israelita, não referindo que os responsáveis do Hamas possuem como meta declarada, para a qual apontam sem concessões, a «destruição de Israel», e que foram eles a quebrar o cessar-fogo, contra a posição negociadora da Fatah. Como ignoram a existência de um amplo movimento israelita a favor da paz e de um grande número de objectores de consciência que, contra o expansionismo sionista, propõem uma abordagem do conflito que passe pela aproximação entre vizinhos historicamente destinados a entenderem-se.
Observamos por todo o lado manifestações cegas, claras deturpações e mesmo mentiras (o «subcomandante Marcos» chegou ao ponto de inventar uma declaração inexistente de Barack Obama sobre o seu apoio à invasão de Gaza). E reconhecemos posições que, de tão marcadas pela «ira da guerra», se mostram inúteis, contraditórias e perigosas. Não parece que devamos ir para a rua gritar indiscriminadamente «a favor do Hamas» ou «contra Israel», sendo apenas «pelos palestinianos» e «contra os judeus». Nem escolher obrigatoriamente a posição contrária, de aplauso de tudo aquilo que o governo israelita resolva fazer, incluindo o bombardeamento metódico de populações civis com as quais os «heróicos combatentes» do Hamas resolveram misturar-se. No levantamento de uma forte corrente da opinião pública internacional, partilhando a convicção de que a paz é possível – a paz, não apenas mais um cessar-fogo – e pressionando os governos para que tomem iniciativas sérias nesse sentido, residirá mais tarde ou mais cedo uma boa parte da solução.