Adaptação do original publicado na revista LER de Fevereiro
Os chineses denominam a China de Zhongguo, traduzido no passado como Império do Meio e hoje como País do Centro. A designação reflecte uma visão sinocêntrica do mundo, concebendo-se inicialmente Zhongguo como a quase totalidade da terra conhecida, cercada apenas por alguns potentados tributários que se submetiam ao poder do imperador. Do lado de fora, a distância geográfica, a efabulação presente nos escassos relatos e as imagens de exotismo colocavam os chineses num mundo à parte, admirado ou temido mas sempre estranho e insulado. Dentro e fora da Grande Muralha e das linhas de fronteira, fixava-se um desconhecimento mútuo, que já só no século XX, com a expulsão do último imperador da Cidade Proibida, o estrépito planetário da Revolução Cultural, ou, mais recentemente, a abertura económica ao mundo, pôde ser abalado. Mas como diz Harry G. Gelber neste O Dragão e os Diabos Estrangeiros, o fluxo e o refluxo do interesse dos outros Estados e das outras sociedades pela China tem sido relativamente ignorado.
O que esta obra se propõe desenvolver não é, pois, uma mera história da China a partir do seu desenvolvimento interno, mas sim uma narrativa das ligações entre os chineses e o resto do mundo apoiada em três vertentes, conferindo-se especial ênfase ao modo como esse relacionamento determinou, e continua a determinar, a vida interna do imenso Estado e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do seu lugar no mundo. A primeira vertente aborda as relações físicas propriamente ditas, o contacto, frequentes vezes violento, dos chineses com outros povos: desde as primeiras incursões dos cavaleiros das estepes até às conquistas mongóis do século XIII, continuando depois com a chegada dos primeiros europeus, e prosseguindo até fechar com as reacções estrangeiras aos acontecimentos da Praça Tienanmen, em 1989. A segunda procura explicar o que movia as diversas potências no processo de aproximação ou de intervenção no território ou na política interna da China. A terceira identifica e documenta três problemas que se têm mantido recorrentes durante um tão longo período, determinando regularmente a vida interna chinesa e o relacionamento com o exterior: o enorme crescimento populacional, o carácter centralista e personalizado da administração central, e a volatilidade das fronteiras.
Como seria de esperar numa obra desta natureza escrita no início do século XXI, acompanhando a preocupação com este tipo de relacionamento encontra-se sempre o lugar de destaque que a China ocupa hoje no mundo. No capítulo final, «A Caminho do Futuro?», considera-se o seu papel de relevo no domínio da ciência e da tecnologia, bem como o modo como interfere nas actuais tendências da economia mundial, evidenciando um crescente peso na balança do poder global e criando as melhores condições para um retorno daquele medo que fora das suas fronteiras sempre despertou.
Harry G. Gelber, O Dragão e os Diabos Estrangeiros. A China e o Mundo, de 1100 a.C. até à actualidade. Tradução de Pedro Garcia Rosado. Guerra e Paz, 568 págs.