Arquivos Mensais: Abril 2009

Poética social

Gente

Intimidade Cultural, subintitulado Poética Social no Estado-Nação, é uma colectânea de ensaios publicada entre 1986 e 1995 pelo antropólogo Michael Herzfeld, um professor da Universidade de Harvard que há cerca de trinta anos vem pesquisando e escrevendo sobre os caminhos da Grécia contemporânea. Se existe uma orientação comum aos diversos artigos compilados, ela traduz-se na tentativa de compreender a forma como aquilo a que chamamos «valores» se incorpora na experiência das relações sociais. É neste âmbito que se coloca o que Herzfeld chama aqui de «intimidade cultural», um lugar do espaço colectivo onde os valores que os indivíduos e grupos consideram como seus se cruzam e interagem com os demais. Esta intimidade cultural apoia-se, por sua vez, numa «poética social», observada como «apresentação criativa do eu individual», e que se apresenta aqui como expressão da «função poética da linguagem»: a possibilidade, inscrita na língua e na cultura de cada um, de jogar a todo o instante com os códigos que são apropriados e emitidos pelos outros. É também abordada neste livro a integração do Estado neste processo, uma vez que este é sobretudo «um conjunto de instituições e de estratégias que se apoiam nos mecanismos sociais mais quotidianos», e que, precisamente por isso, não pode ignorar as crenças e os mitos, os localismos e as segmentaridades, as identidades e os estereótipos. Uma reflexão estimulante, que nos deixa ver para além do realismo político que do mundo em volta apenas capta o óbvio e quase sempre o tristonho. [Trad. de Marcelo Félix, Edições 70, 368 págs. Originalmente na LER de Março.]

    Atualidade, Olhares

    As visitas

    As visitas

    Como era de esperar, a mudança de morada deste blogue trouxe consigo uma redução temporária (espera-se, claro) dos acessos. Neste momento, para pouco mais de um terço do que ocorria ainda há poucos dias. Parte desta redução deve-se a que muitos visitantes chegam ao blogue através de motores de busca ou de posts citados que apontam para a outra direcção. Mas existe uma porção significativa de acessos que chega através das listas oferecidas por outros blogues ou dos favoritos guardados nos browsers. Pede-se por isso aos amigos e interessados n’A Terceira Noite que não se esqueçam de actualizar essa informação. Entretanto, devido à extensão da nova barra lateral, a lista completa de blogues recomendados encontra-se agora na página Blogues.

      Etc., Oficina

      Cuba Sí, pero…

      Fidel e Camilo Cienfuegos
      Fidel e Camilo Cienfuegos

      Alguns dos factores que no início da década de 1960 transformaram a revolução cubana e os seus rostos salientes – um Fidel persistente e carismático, o efémero mas decisivo Cienfuegos, um Che em breve tornado imortal – num factor de atracção e de romântico entusiasmo para toda uma geração de europeus ocidentais e de nascidos nas Américas que incluía intelectuais e revolucionários, mas também muitas pessoas pouco politizadas, parecerão hoje algo paradoxais. Sobretudo se observarmos aquilo em que Cuba se transformou e se identificarmos o perfil político daqueles que hoje ainda defendem sem hesitações o regime que governa o país. Essa atracção e esse entusiasmo advieram, justamente na época em que os partidos comunistas começavam a perder o pé junto de alguns dos sectores mais dinâmicos da esquerda ocidental e de uma nova geração de estudantes e de trabalhadores, do facto de os revolucionários da ilha de Martí parecerem evidenciar uma acentuada ruptura em relação à cartilha ideológica proposta a partir de Moscovo e à imagem cinzenta, gerontocrática, fornecida pelos rostos que, da tribuna do Kremlin, zelavam diariamente pela sua preservação.

      À deriva proto-nacionalista de grande número de partidos e organizações comunistas tradicionais, ao esgotamento do padrão de sociedade que estas erguiam como paradigma, ao impacto perturbador da invasão da Hungria pelos soviéticos e das revelações de Kruchtchev no XX Congresso do PCUS, contrapunha-se a emergência de um novo e polissémico universo de expectativas que os agora renovados movimentos sociais reivindicavam, e que os barbudos cubanos, jovens, informais, arrebatados e com os olhos no futuro, com Fidel à cabeça, pareciam materializar. Não por acaso, os insubmissos cubanos, bem como os seus primeiros e incondicionais apoiantes – com Sartre, já então saído do PCF, à cabeça – foram vistos de início com muita desconfiança pelos mesmos partidos comunistas que então, é bom não esquecer, denunciaram o «aventureirismo guevarista». Hoje deparamos com a inversão destas atitudes de afeição e de desconfiança: politicamente insulada, a «revolução cubana» viria a fixar-se nos modelos de autocelebração que originalmente repudiara. Por sua vez, privados das anteriores referências fundacionais, alguns partidos comunistas passaram a erigir como modelo o regime que um dia olharam com desconfiança ou mesmo com animosidade. A História faz-se de factos, por muita reescrita que a possa envolver, mas nela a Revolução Cubana terá sempre um lugar de destaque.

        História, Memória, Opinião

        O outro 1º de Abril

        Guerra Civil

        No dia Primeiro de Abril de 1939, perfazem-se hoje setenta anos, terminou a Guerra Civil de Espanha. Singularmente violenta e persistentemente traumática, causou mais de 600.000 vítimas civis e militares caídas de ambos os lados, tendo servido de palco para um número ainda indeterminado de atrocidades. Viveu os primeiros bombardeamentos aéreos sistemáticos sobre populações civis efectuados por aviação fornecida pela Alemanha nazi e pela Itália fascista; assistiu à eliminação metódica de um grande número de militantes do POUM, a organização comunista antiestalinista, por parte de agentes da polícia política soviética lançados no terreno; e coabitou com execuções sumárias de suspeitos, em regra membros do clero ou pessoas das classes média e alta, consumadas por anarquistas e comunistas. Ao mesmo tempo, os nacionalistas faziam assentar o seu avanço militar, e o poder no terreno que a partir dele iam exercendo, sobre a chacina, o terror e depurações sistemáticas, prolongadas por muitos anos após o termo dos combates.

        Para além da preservação da dimensão lendária desta guerra, em boa parte justificada pela forte mobilização da opinião pública ocidental que provocou e pelo empenho nas fileiras das Brigadas Internacionais de um grande número de artistas e intelectuais antifascistas, a sua memória é presentemente objecto de um combate colectivo que visa libertar do silêncio a recordação dos actos de brutalidade praticados pelos franquistas. Alterando a narrativa parcial e artificialmente benigna que estes produziram a propósito das condições em que chegaram ao poder e sobre a forma como o mantiveram. E procurando promover a reconciliação com o seu próprio passado da metade da Espanha que ao longo de décadas permaneceu calada.

        Adenda: os Caminhos da Memória referem aqui um conjunto de seis vídeos sobre as circunstâncias e o decurso da guerra, enquanto o El País e o Público.es têm vindo a publicar excelentes artigos sobre o tema.

          História, Memória

          E-people

          Teach them

          A informação chega-me através de um artigo de Miguel Gaspar: o governo britânico está a estudar uma reforma do ensino básico que pretende destacar a aprendizagem das novas tecnologias, em especial a das redes sociais da Internet, em detrimento dos saberes considerados convencionais. Não tenho nada contra a divulgação alargada e sistemática destes processos – que uso diariamente, intensamente, produtivamente muitas vezes, e que recomendo –, mas tenho tudo contra a desqualificação do conhecimento estruturante em favor de uma deriva comunicacional apresentada como valendo por si mesma. O problema, julgo, advém em larga medida do facto dos centros de decisão política – leia-se: os partidos institucionais – estarem cada vez mais nas mãos de gente «especialista» em conhecimento funcional, que cresceu politicamente na gestão do imediato, e que descarta, como anticorpos, aqueles que pensam para além do momento. Daí também a desvalorização sistemática das humanidades e da reflexão crítica que estas oferecem. Temas aos quais regressar aqui com mais tempo e um outro cuidado.

            Apontamentos, Cibercultura, Democracia