Partidário de uma reflexão iconoclasta projectada sobre alguns dos temas contemporâneos mais problemáticos, em A Loucura de Deus Peter Sloterdijk ocupa-se do inquietante potencial de violência que os três monoteísmos mantêm no mundo actual. Ele pode preludiar, de certa forma, uma «guerra mundial» de um novo tipo, na qual as três grandes religiões com pretensões universalistas se defrontariam num combate total de morte e destruição destinado a obter o monopólio do absoluto e da verdade. Desde logo pela interferência da religião judaica, apoiada numa espécie de contrato «entre um psiquismo grave e grande e um Deus grave e grande». Depois, um cristianismo que conserva muitas das características que o ligam ao judaísmo mas integra «acentos cristológicos» de uma novidade ainda subversiva que lhe conferem uma dinâmica de proselitismo. Por fim um Islão que procurou, desde o seu atribulado início histórico, corrigir as falhas, as «errâncias», dos monoteísmos que o precederam, integrando desde a primeira hora «impulsos religiosos e político-militares» de uma natureza prática e belicosa.
Relacionando-se e opondo-se através dos tempos, num dado momento histórico estas três religiões viram-se confrontadas com o aparecimento do comunismo, que emergiu revogando as antigas proposições proféticas e reformulando-as «numa linguagem do real» como quarta figura do universalismo militante. «A estafeta do profetismo», escreve o filósofo alemão, teria assim «passado de Moisés a Jesus, de Jesus a Maomé e de Maomé a Marx». Porém, o aparente fim do comunismo terá emancipado essas religiões tradicionais de um inimigo comum, libertando-as para o regresso a uma lógica de radicalidade e confronto agora transformada, sob a forma de «loucura de Deus», num risco real para a humanidade no seu todo. Tanto mais que cada uma delas integra um número crescente de zeladores, ávidos de impor a sua fé através da radicalidade e de uma lógica de confronto que lhe é crescentemente associada. A guerra israelo-palestiniana, as movimentações planetárias do islão radical e o fundamentalismo protestante americano estão diante dos nossos olhos para comprovar a consistência deste perigo.
O fármaco para combater esta pandemia de violência que parece alastrar a cada momento encontra-se então, provavelmente, na transformação desses zeladores, apóstolos irredutíveis da incomunicabilidade e da supremacia da sua crença, em actores civis de uma sociedade que deve construir-se pela via do diálogo, modificando as religiões no sentido destas se requalificarem como instrumentos preservadores de cultura, capazes de metamorfosearem todo o universalismo militante e agressivo num cosmopolitismo consistente e civilizado. A «ciência da civilização», uma ciência da coexistência assim erguida, seria para Sloterdijk «a verdadeira moderadora do espaço habitável da superfície terrestre». Vislumbre de uma teoria optimista do improvável.
Peter Sloterdijk, A Loucura de Deus. Do combate dos três monoteísmos. Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Relógio d’Água, 146 págs.
Publicado originalmente na revista LER de Abril