Um texto escrito em 2001 para a revista Periférica que talvez venha a propósito de acontecimentos recentes e de alguns dos medos que sentimos por estes dias. Quase tudo permanece.
Um dia chegaram notícias da violência. Ecos dos bandos que percorriam as grandes metrópoles. Dos gangs juvenis de Los Angeles ou Berlim, da forma como se moviam em áreas do Rio, Joanesburgo ou Lima. Mas isso era longe daqui, até onde nos levavam os telejornais, a literatura, uma ou outra viagem, mas nunca as portas das nossas casas. Soubemos depois que circulavam já no metro de Paris ou pelas ruas de Birmingham. Até que os vimos aqui. Percorrendo, de anoraques e calças largas de rapper, ou blusões de cabedal e botifarras, as ruas dos nossos bairros-dormitório. No preciso instante em que, após um dia de trabalho e doses brutais de reality shows, cidadãos aparentemente ordeiros dormiam debaixo dos cobertores, podíamos vê-los como sombras, correndo em fuga para a escuridão diante de polícias nervosos e das câmaras da televisão.
Hans Magnus Enzensberger observava em 1994, nas Perspectivas da Guerra Civil, a agressividade, aparentemente inexplicável, dos grupos que no coração das principais cidades dos países industrializados se preparavam para banalizar a violência. Os acontecimentos dos últimos anos deram sentido a esse temor, como o comprova o aumento do ruído das sirenes nocturnas, o pavor de circular por certas áreas, as grades de aço em lojas e residências, a proliferação de alarmes nos edifícios e nos carros, o inquietante negócio das empresas de segurança, as «milícias populares» que querem combater os intrusos servindo-se das mesmas armas.
São grupos de jovens – quase sempre rapazes e com menos de 25 anos – que descobrem na violência um estilo de vida. Seja através do pontapé no caixote do lixo, ou do pneu furado, ou do telefone público inutilizado com um alicate. Às vezes recorrendo ao pequeno furto, à faca de ponta, ao revólver, à seringa. Alguns deles, mais particularmente excluídos e conscientes dessa exclusão, pertencem a minorias étnicas – os negros, os ciganos, em outros países também árabes ou hispânicos – sendo este um aspecto que a polícia e os média nunca se esquecem de sublinhar. Outros são europeus, de alvíssima pele, cristãos baptizados, em alguns casos oriundos até de famílias estáveis. Frequentemente unidos por vínculos tribais relacionados com a música que consomem, a linguagem oral e gestual da qual se servem, a roupa que vestem ou os bares que frequentam. Por vezes, apenas gente sem ordenado certo ou futuro visível, aqui ou ali relacionada com o consumo de certas drogas e com o álcool. Sempre em condições de considerarem desnecessária a justificação das suas acções, como nos anos 60 e 70 ainda tinham o cuidado de fazer os guerrilheiros urbanos, os terroristas profissionais e até alguns criminosos comuns.
Sente-se muito o impacte directo dessa revolta no nosso quotidiano de cidadãos por enquanto respeitadores da polícia e dos tribunais. O massacre tornou-se entretenimento de massas. Sobretudo depois de 1971, com a Laranja Mecânica, de Kubrick, filmes e vídeos das séries A ou B rivalizam entre si para fazer do arruaceiro, do assassino profissional, do sequestrador, do serial killer, anti-heróis que são objectos do culto de um público fiel e cúmplice. Um bom exemplo é O Clube da Luta (1999), a obra de David Fincher. Os netos transviados dos sixties, filhos dilectos do punk, formaram pelo final do século grupos como os Public Enemy, os Primal Scream ou os Kahlschlag (Zona Devastada), enquanto os Guns N’Roses venderam mais de 15 milhões de exemplares do álbum Apetite for Destruction. Os tablóides passaram a mostrar sangue e equimoses até à exaustão. The Hate Directory, que identifica na Internet a presença de páginas cujo objectivo é a promoção explícita da violência social, aponta para muitos milhares delas.
Os sectores mais nostálgicos do passado – desde os defensores dos rigorismos confessionais às correntes que aceitam a contra-gosto o jogo democrático, subvertendo-o sempre que podem – descrevem a sua aparição como resultado da derrocada de um «antigo regime» que nunca existiu. No qual, dizem, um dia imperara a decência e os bons costumes, a ordem e a disciplina, a contenção moral, imposta por um Estado que se presumia pai e tirano, da divergência e da revolta. A corrupção do mundo seria assim coisa recente e ficaria a dever-se, para esta gente que apenas recorda aquilo que lhe importa recordar, aos movimentos emancipalistas e revolucionários dos últimos dois séculos – empenhados, naturalmente, em inventar quimeras e em criar a desordem – bem como ao declínio das sociedades tradicionais e dos valores que consagram a religião e a autoridade. No renascimento da prática sublime e virtuosa da obediência e da resignação, estaria então a salvação, sendo o retorno à rigidez das hierarquias o caminho a seguir.
Mas acontece que a fúria gritada por estas hordas de «rapazes maus» não é um simples fenómeno de moda, resultando da clivagem social que potencia a exclusão. A violência parece-lhes a única forma acessível de preencher vidas vazias e sem destino, de enganar o extremo tédio, de sobreviver naquela que lhes parece ser uma insuperável e insuportável marginalidade. De suprir também a pequena mas irreprimível necessidade: um par de ténis novos, um telemóvel de última geração, dinheiro para uma noite de shots, charros e engate, importunar o descanso do «careta». E ainda como forma de proclamar que existem e são gente, como modo de contornar a repulsa da qual se sentem objecto, como maneira de se verem temidos e, por isso, um pouco menos desprezíveis. Franz Fanon afirmou um dia que os «condenados da terra» não se rebelam apenas contra a miséria e a fome, mas também contra a contínua humilhação a que são submetidos. Só que, neste tempo desprovido de grandes causas, fazem-no sem uma causa expressa: nada está de facto em jogo, para além da revolta pura e dura, da ira diante das demonstrações provocatórias do dinheiro, da fama e do poder.
Muitos destes bandos são manipulados por forças que se servem deles como tropa de choque contra os actuais movimentos democráticos de protesto contra as consequências negativas da globalização. Como ficou demonstrado em Julho de 2001, com a actuação dos pró-nazis do Bloco Negro durante as violentas manifestações de Génova. Porém, a iniciativa destas fracções existe apenas porque elas actuam como parte menor e diferenciada de um movimento muito mais complexo de rebelião contra a marginalização económica, política, étnica e cultural. Este movimento contribui, aliás, para dar um sentido mais organizado e portador de uma plataforma política mínima à insurreição de rua, exprimindo a repulsa por um modelo de desenvolvimento único e pela imposição repressiva – centrada na escola, no trabalho e no papel dos média – do conformismo e da submissão do indivíduo. Perante uma educação para o trabalho sem trabalho no horizonte, frente à ostentação do luxo e do sucesso diante de quem jamais os terá para si próprio, a violência pode assim ser lamentável ou perturbante, mas é um sinal.
Em Trainspotting (1993), o romance de Irvine Welsh que serviu de argumento a um filme de culto e de inspiração a uma banda sonora popular na época, ficcionava-se sobre a vida de um grupo de jovens de Edimburgo «tão desesperadamente realistas que para eles o futuro é inconcebível». Reconhece-se aqui que o centro do problema não se encontra nessa gente revoltada, mas no mundo triste que lhe é oferecido e pelo qual não pode ser responsabilizada. Talvez assim se torne possível conceber a alegria breve e ébria oferecida pelos instantes de uma violência destrutiva que apenas parece gratuita e condenável. Convém lembrá-lo antes de açularmos os cães, respondendo ao ódio com mais ódio. Aquecendo o preconceito. E lavando as mãos no calor dos nossos lares.