Ser-se ex-maoísta ou um antigo pró-chinês pode não ser condição invulgar para um europeu que ronde hoje os 50 ou 60. Existem bastantes, alguns deles sentados até, com razoável firmeza, em very high places. Agora ter-se vivido algum tempo, nos idos de setenta, como «amigo da Albânia», parece coisa exótica, aparentemente inexplicável. Para lá da fidelidade política que mantínhamos perante uma espécie de micro-utopia que acreditávamos ter descido à Terra, tenho procurado entender as circunstâncias que levaram um grupo de jovens como nós, razoavelmente instruídos e assumidamente revolucionários, a aderir a tal causa. A ignorância, talvez, sem dúvida, mas o desejo de vermos materializado um ideal ascético de igualdade e militância seria a principal razão: a pobreza generalizada parecia-nos sobriedade, a monotonia dos discursos era para nós rigor, os traços caquécticos da classe dirigente eram rictos resultantes de uma vida com responsabilidades de Estado, o kitsch de um realismo socialista estéril e serôdio era uma marca excelsa e exemplar de um futuro que críamos inevitável. O nosso idealismo de «amigos da Albânia» – como o dos amigos da URSS, ou da RDA, ou de Cuba, por sua vez nossos mortais inimigos – fazia-nos ver claramente aquilo que queríamos ver e desejávamos, acima de tudo, revelar aos outros. De tal forma que olhávamos até com suspeição O General do Exército Morto, do albanês Ismail Kadaré, um «escritor de regime» demasiado «psicologista» que afinal não se parecia muito com outros escritores, para nós realmente exemplares, como o Nikolai Ostrovsky de Assim Foi Temperado o Aço, ou o Jorge Amado da Seara e dos Subterrâneos. Percebi isto um pouco melhor, e vi o filme andar para trás em câmara lenta, quando li parte da recente entrevista de Kadaré – vencedor do último Prémio Príncipe das Astúrias de Letras – à Folha de São Paulo.
Folha – É favorável à entrada da Albânia na União Europeia?
Ismail Kadaré – Sim. É a única esperança para que os Balcãs entrem numa via de desenvolvimento normal. Ironicamente, o povo mais pró-europeu e ao mesmo tempo mais pró-americano são os albaneses. É curioso, porque era o povo mais estalinista. Há uma lógica interna para isso. Passamos de um extremo a outro, como uma reacção.
Folha – E como foi a questão da dissidência ao regime, no seu caso?
Ismail Kadaré – Na Albânia não se podia ser publicamente contra o regime, era totalitarismo absoluto. Mas pela literatura era possível contestar o regime. Tudo que escrevi e publiquei foi feito nesse contexto. Nunca fiz ataques directos ao Estado, somente ironias escondidas, um pouco mais evidentes às vezes. Quando me perguntam se sou um dissidente digo não. Sou um escritor normal, num país anormal. E isso já é muito.
Folha – Mas teve um período de apoio ao regime, não?
Ismail Kadaré – Desde o começo tive reservas ao regime, ainda que elas não fossem tão conscientes. Se você ama a literatura, não pode amar o regime comunista. Não pode amar ao mesmo tempo Macbeth e a direcção do comité central de Estaline.