Escrevo durante uma pausa na leitura coerciva de No Inferno dos Khmers Vermelhos, de Denise Affonço (Pedra da Lua). A autora é uma sobrevivente do imenso campo de morte e atrocidades no qual, entre 1975 e 1979, se transformou todo o Camboja. Naqueles quatro anos, pelo menos 1,7 milhões de pessoas, cerca de 20 por cento da população, sucumbiram à fome, às doenças, aos trabalhos forçados, à tortura e às execuções sumárias. O objectivo do poder khmer, apoiado num exército de adolescentes fanatizados e aplicados em impor um sacrifício colectivo purificador, era o regresso imediato, sem qualquer transição ou cedência, a uma vida rural, absolutamente primitiva, assente nos princípios do que consideravam ser o comunismo integral. A construção acelerada da distopia perfeita. O extremo horror pode ser revisitado observando certas normas impostas aos milhões de cidadãos-prisioneiros: «é proibido exprimir sentimentos de alegria ou de tristeza», «é proibido ter saudades do passado», «nunca nos devemos queixar do quer que seja». Ou algumas das apertadas regras relativas à aparência: «nunca devemos usar roupas de cor», «caminharemos de pés nus: acabaram os sapatos e os chinelos», «as pessoas com problemas de vista deixarão de ter direito a usar lentes correctoras», «quando estivermos sentados (…) é proibido cruzar as pernas, sinal exterior do capitalismo», «trabalharão todos os dias do nascer ao pôr-do-sol; sábados, domingos e feriados são abolidos». Um terrífico relato de viagem ao território mais recôndito da impiedade e da maldade humana.