Do Cadillac ao Trabant

Trabant

Iván de la Nuez, ensaísta e crítico de arte cubano residente em Barcelona, percorre, na prosa singular desta Fantasia Vermelha, alguns dos ecos da Cuba revolucionária recolhidos por muitos daqueles para quem esta um dia constituiu um importante factor de atracção. Ao mesmo tempo, oferece uma reflexão estimulante sobre a sua própria condição do intelectual de esquerda na era pós-comunista. No centro do esforço, uma tentativa de rastrear a mitografia construída em redor da paixão e da esperança projectadas a longa distância pela insurreição dos barbudos caribenhos. No termo do exercício, o autor acabará por questionar a perda dessa expectativa e por procurar uma saída para o impasse.

Um velho Cadillac serve de metáfora e ponto de partida, indiciando um olhar projectado sobre a Cuba «de charme» que os guerrilheiros da Sierra Maestra combateram e depois herdaram. Muitos anos depois, reparado sabe Deus como com peças de fabrico soviético, e circulando com formidável estrépito do motor pelas ruas de Havana, o velho automóvel evoca os problemas reais que o regime inaugurado em 1959 jamais foi capaz de solucionar. Em redor, entretanto, uma fantasia imensa foi sendo construída. Esta é olhada por de la Nuez não como imagem enganosa, mas, na senda da proposta de Peter Sloterdijk, como «uma teoria da imaginação produtiva, (…) uma ficção operativa», capaz, a partir de fora, de transformar a ilha num espaço sobre o qual se projectaram sucessivas representações de um mundo que se cria único e admirável. Gente tão diversa quanto Jean-Paul Sartre, Régis Debray, Giangiacomo Feltrinelli, Oliver Stone, Sydney Pollack, Wim Wenders, Ry Cooder ou David Byrne – entre «centenas de atletas da esquerda ocidental» que viajaram até Cuba à procura da sua utopia pessoal – colaborou então, com apego e eficácia, nessa construção tão fictícia quanto poderosa. Prolongada hoje através de uma reinvenção – no trilho dos ambientes de O Nosso Homem em Havana, de Graham Greene – do mundo pré-revolucionário: «carros vintage, vestuário de época, sabor tropical, regresso de sonoridades típicas», que o organismo director do turismo cubano procura aproveitar ao máximo, associando-lhes frequentemente uma evocação voluntariosa do regime e a incondicional admiração por uma endeusada gerontocracia «portadora da verdade». Ficção não partilhada pela generalidade dos cubanos, que, insiste o autor, nela têm participado fundamentalmente como espectadores ou meros figurantes.

Qual o sentido tomado então neste livro pela segunda metáfora, aquela que evoca o ronceiro Trabant, «o pior carro do mundo»? Na actualidade, os velhos automóveis, outrora fabricados na Alemanha de Leste, circulam apenas como curiosidade, continuando a trabalhar graças a peças fabricadas agora por empresas capitalistas. No último capítulo, de la Nuez evoca então alguns dos contornos de um imaginário pós-comunista que identifica como cenário para a construção de uma esquerda domesticada, que já não passa pela utopia um dia reflectida pela revolução cubana. Real mas hoje fora do tempo, como um Trabant.

Iván de le Nuez, Fantasia Vermelha. Os intelectuais de esquerda e a revolução cubana. Tradução de Ana Bela Almeida. Angelus Novus, 142 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Julho-Agosto]

    Atualidade, História.