Enquanto aguardamos pela tradução do diário secreto do antigo primeiro-ministro chinês Zao Zyiang – afastado em 1989 em consequência da posição moderada que assumiu durante o episódio de Tien An Men –, Chu En-Lai. O Último Revolucionário Perfeito abre caminho para um conhecimento mais completo dos intrincados meandros pelos quais têm passado, na história recente da China, os equilíbrios e os desequilíbrios do poder. Mas não se trata de uma biografia no formato clássico, uma vez que o biografado raramente é olhado na complexidade da vida pessoal ou dos fundamentos que determinaram a sua acção pública, sendo visto apenas na medida, e nos actos, em que o seu trajecto se cruzou, sempre numa relação proximidade e de dependência com o de Mao Tsé-Tung, com a luta pelo poder na China comunista. A esta característica não é alheio o facto do autor, Gao Wenqian, ter sido ao longo da década de 1980 o biógrafo oficial de Chu junto do Gabinete Central de Investigação e Documentação do Partido Comunista Chinês. O método aplicado pela historiografia oficial num regime como o chinês exclui, de facto, uma abordagem individualizada do trajecto intelectual e vivencial do biografado, confinado obrigatoriamente à projecção aceitável da sua imagem pública. O material utilizado cerceou também a possibilidade de uma outra observação, uma vez que o livro foi escrito quase exclusivamente a partir da documentação que Gao reuniu e das entrevistas que fez enquanto trabalhou naquele gabinete, antes ainda de emigrar em 1993 para os Estados Unidos.
A figura de Chu conserva um lugar especial no percurso da China contemporânea. Ao contrário da quase totalidade dos principais líderes do passado do PCC, que passaram por momentos de rápida ascensão e de abrupta queda, sobreviveu às depurações e manteve uma posição de contínuo destaque, apenas comparável à do próprio Mao. O que pode parecer estranho, sabendo-se, e Gao enfatiza este aspecto, como a relação entre ambos foi sempre difícil, e de que modo Mao – que concebia Chu como alguém que um dia poderia cumprir um papel idêntico àquele que Kruchtchev desempenhara na condenação post-mortem de Estaline – sempre desprezou os seus modos afáveis, tão diferentes dos seus, tendo esperado durante anos pelo momento exacto para o fazer cair, como o fez com o antigo presidente Li Chao-Chi no início da Revolução Cultural ou com o marechal Lin Piao. A explicação deste casamento de conveniência encontra-a Wenqian em três características de Chu que o tornaram incontornável: a sua capacidade para sobreviver aos conflitos através de um diplomático calculismo, o tom de moderação pública associado a um inusitado vigor aplicado à gestão do partido e do governo que lhe granjeou a fama de insubstituível, e a profunda convicção de comunista que manteve sempre e lhe forneceu, na actividade partidária como nas tarefas de primeiro-ministro, uma imagem de rectidão e um enorme prestígio público. Nos derradeiros dias, quando entrava na sala de operações da qual sabia que não sairia vivo ou capaz – pois Mao havia-o metodicamente impedido de receber a tempo o tratamento adequado –, as últimas palavras que pronunciou foram: «Sou leal ao Partido Comunista, leal ao povo!»
Gao Wenqian, Chu En-Lai. O Último Revolucionário Perfeito – Uma Biografia. Tradução de Ana Barradas. Pedra da Lua, 328 págs. [Publicado na LER de Outubro]