O argumento de Avatar é trivial, na linha de um certo cinema americano pós-sixties de bilheteira – agora já sem os tiques da Guerra Fria – para o qual a luta entre o bem e o mal traduz frequentemente um confronto directo entre pessoas comuns, lesadas nos seus direitos, e os agentes de uma qualquer tirania que procuram subjugá-las. Só que, no caso, essas «pessoas comuns» são os Na’vi, seres de pele azul e compleição esguia, que vivem em comunhão com o que o espaço e os animais que os rodeiam no distante e quase edénico planeta Pandora. O resto do filme de James Cameron tem contornos de western, fechando com o castigo do vilão e o transpirado herói a ficar de bem com a mocinha (ou a squaw, já não sei bem).
Trata-se de um aparatoso filme de entretenimento, com quase três horas de efeitos 3D que deixam qualquer espectador exausto, com o sentido da visão momentaneamente perturbado, mas feliz por isso. Eu, pelo menos, fiquei-o. Transcrevo, para não dizer mais ou menos o mesmo por outras palavras, aquilo que Jorge Leitão Ramos escreveu no Expresso: «Mesmo percebendo que há uma falta de textura, de peso, que retira aos eventos e à acção emoções profundas, a verdade é que os achados visuais são portentosos e não me refiro só aos seres fantásticos, ora insectos, ora árvores imensas, ora canídeos ferozes, ora criaturas dinossáuricas ou aos espaços da natureza de uma exuberância que roça o delírio. Refiro-me aos intérpretes, aos corpos dos Na’vi, aos seus felinos movimentos, a uma respiração sensual que habita todo aquele mundo mágico e espantoso.»
Merece entretanto um comentário um padrão de crítica que se compraz a depreciar o filme com argumentos bastante perversos. No Telegraph, Will Heaven fala de um «subtexto racista» que se fica a dever ao pormenor dos Na’vi usarem adereços e armas próximas das utilizadas por algumas etnias africanas. Mas principalmente ao facto da libertação da tirania ser trazida «de fora», de forma paternalista, por seres híbridos que tinham sido originalmente humanos e dispunham de sageza e tecnologia próprias da sua espécie de origem. Não importa se estes humanos tomaram o partido dos naturais e escolheram passarem a ser uns deles. A tolice repetitiva do remorso ocidental é ecuménica e, pelo lido, transportável também para Pandora. Para mim trata-se, insisto, de um filme belo e divertido que deixará nos espectadores uma marca de preocupação ecológica e de grande humanidade (sim, somos nós, humanos de não-ficção, que a escrevemos e lemos essa humanidade). E pontua o início de uma nova epopeia visual aplicada ao cinema que muito provavelmente repercutirá, como tem sido dito, uma alteração das expectativas plásticas do espectador idêntica à projectada em 1968 por 2001: Odisseia no Espaço, de Kubrick.