Expectativa

Trotsky

Depois das biografias bastante controversas de Lenine e de Estaline, o historiador Robert Service voltou-se agora para o intelectual marxista e revolucionário bolchevique Lev Davidovitch Bronstein, e o resultado parece um pouco inquietante para a sobrevivência do Trotsky mítico. Para além do papel decisivo que teve na vitória militar da revolução russa de 1917, a sua dimensão lendária ter-se-ia ficado a dever a ser alguém que se opôs abertamente a Estaline mas jamais chegou a controlar o poder na URSS – logo nunca «sujou as mãos» –, e também a possuir um evidente carisma, favorecido pela capacidade oratória e por uma esteticização da própria imagem. Ao ponto de muitos trotskistas, em larga medida apoiados na monumental história de vida publicada por Isaac Deutscher entre 1954 e 1963, o terem transformado numa espécie de «proto-Che Guevara».

Robert Service procura pulverizar esta ideia: de acordo com a sua perspectiva, não só Trotsky jamais teve a possibilidade de chegar ao topo por ter sido sempre ultrapassado pela habilidade de Estaline, como a sua insuportável arrogância fazia com que a maioria dos camaradas com os quais tinha de conviver o detestasse. Lia ostensivamente romances franceses nas reuniões do Politburo sempre que um orador o aborrecia, por exemplo, o que não o tornava propriamente um ente querido. Além disso, nada indica que, se tivesse conseguido dirigir o país, fosse capaz de impor à experiência da construção do socialismo da URSS o tal «rosto humano» do qual alguns continuam a proclamá-lo o grande profeta, uma vez que muitas das atitudes arbitrárias que tomou enquanto teve alguma autoridade apontam justamente no sentido oposto. Service esforçou-se até por desenhar o retrato de um monstro, capaz da maior violência tanto na intervenção pública quanto na vida privada. De certa forma, como comentou Robert Harris no Sunday Times, terá assassinado Trotsky pela segunda vez. Os seguidores deste, claro, abominaram o livro logo após as primeiras páginas.

Estou agora à espera das seiscentas e tal páginas, já encomendadas e a caminho, para poder escrever alguma coisa mais substancial sobre a obra. Aquilo que fica é, para já, apenas a notícia e a expectativa. E a constatação reiterada de que não existem revolucionários «puros», seres providenciais capazes, depois de terem sentido nas narinas o cheiro a pólvora e experimentado um poder quase sem limites, de permanecerem perfeitos e irrepreensíveis. Pode parecer que não aos mais distraídos, mas há ainda quem persista nesta crença absurda. [Robert Service, Trotsky. A Biography. Macmillan, 2009. 624 p.]

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