Evoca-se hoje o Dia Internacional da Memória do Holocausto, celebrando a libertação pelas tropas soviéticas, ocorrida em 27 de Janeiro de 1945, do complexo de campos de Auschwitz-Birkenau. Ao contrário do que se passa com outros acontecimentos que o tempo vai diluindo, as representações do Holocausto têm permanecido activas, ainda que nem sempre pelos melhores motivos. Destaco dois: a desvalorização da shoah devido ao comportamento do Estado de Israel em relação aos direitos políticos do povo palestiniano, e a negação (ou a depreciação) do próprio extermínio em massa dos judeus levado a cabo pelos nazis, imposta por um certo padrão de revisionismo histórico inspirado pela extrema-direita e/ou pelo islamismo radical. São problemas complexos, sobre os quais tem sido muito fácil dizerem-se as maiores barbaridades, que começam quando se julga o passado apressadamente e, em função de certos combates do presente, se tomam as pessoas por estúpidas.
Entretanto pouco se tem escrito sobre aqueles cujos pais sobreviveram aos campos nazis. As consequências traumáticas para os próprios deportados são bem conhecidas, mas a presença do seu eco junto dos seus descendentes tem permanecido silenciada. Eu Não Lhe Disse Que Estava a Escrever este Livro (ed. Pedra da Lua) destaca treze testemunhos de filhos de judeus franceses sobreviventes de Auschwitz, todos nascidos nos finais da década de 1940, que desafiados pela jornalista Nadine Vasseur aceitaram comentar pela primeira vez a sombra que os acompanhou a vida inteira. Coincidem sem excepção num aparente paradoxo: se, por um lado, a experiência da deportação e da vida nos campos é intransmissível, dada a impossibilidade real de exprimir o sofrimento extremo e solitário dos que as viveram, por outro ela criou nestes uma capacidade para resistir e para sobreviver que os colocou acima das exibidas pela maioria dos humanos, tornando-os pessoas admiráveis mas obrigatoriamente «difíceis» no trato diário. Esta dificuldade encontra-se patente em atitudes que sempre perturbaram muito os seus filhos, que com elas tiveram de conviver desde crianças: a constante descrença («sempre disse ajuda-te a ti próprio, pois o céu não te ajudará»), uma secura imutável («podem ficar com o olhar húmido, mas não choram»), o silêncio sobre o passado («meteu a sua história dentro de uma caixa e pôs uma tampa»). Mas revela-se também numa grande capacidade para enaltecerem «o imenso valor da vida», evitando repisar um passado que preferiam manter no seu foro íntimo.
Este livro especial mostra-nos como foram os filhos dos deportados que sobreviveram a transportarem parte substancial do fardo dos pais. Ele dialoga sempre com a singularidade perturbante de cada testemunho, com a dificuldade sentida por cada um dos entrevistados de Nadine Vasseur em falar de pormenores simples apenas na aparência, como a forte lembrança dos gritos aflitivos dos pais escutados em noites de pesadelo ou a visão nunca comentada «daquela tatuagem no braço, que sempre lhe conheci». Um livro pequeno mas intenso e comovente, que ajuda a contornar a banalizante «indústria do testemunho» e a combater a revisão negacionista do Holocausto que nos tem enchido os ouvidos. Uma sugestão para este 27 de Janeiro.
Este post retoma em parte um texto que escrevi em 2008.
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