Não, não vivemos na fronteira ténue de um regime despótico, açaimados por uma censura que actua na escuridão para esconder «a verdade» das pessoas comuns, cegando-as para as malfeitorias do nefando ditador e dos seus cúmplices de fato completo. Por muita pressão, manipulação, troca de favores da qual seja possível captar alguns ecos, ocasionalmente algumas provas (sim, parece bem possível), por muita arrogância, autismo, sectarismo, verborreia que nos cheguem diariamente (mais do que evidentes), nada indicia que se avizinhe uma democracia musculada de tonton-macoutes e «jotinhas», prontos a tomar posições de combate num cenário de pré-catástrofe. Gritá-lo às três pancadas – nos jornais, nos blogues, nas pracetas – é infantil, é ridículo, é inútil. E é também perigoso, pois desvia a atenção dos cidadãos para os problemas reais que têm a ver, de facto, com a redução da liberdade, a coacção, o medo.
Com estes sim, convivemos cada vez mais, todos os dias, sem feriados ou fins-de-semana, até à exaustão. Eles têm vindo a ser impostos, na administração pública como em muitas empresas, por decretos e regulamentos invariavelmente desumanizados, que em nome da sacrossanta «competitividade» minam a confiança entre as pessoas, reinstalam o autoritarismo, acentuam as desigualdades, sobrecarregam os horários, precarizam o trabalho e incitam ao individualismo cego do salve-se quem puder. Envenenam assim, lentamente mas sem descanso, o espaço para falar livremente e para criticar, enquanto premeiam o seguidismo e a cobardia. Não estou, como bem sabe quem tem o seu emprego ou o perdeu há pouco tempo, a falar de fantasias. Nem a arquitectar um cenário para revoluções salvíficas e perfeitas. Refiro-me à vida, em alguns casos à sobrevivência, de gente que vive ameaçada. Isto sim, justifica a vigilância, a denúncia, a resistência.
| Publicado também no Arrastão