O direito a dissidir

Dissidência

Pode parecer uma bizantinice, mas vale a pena encarar a questão levantada por Pedro Correia – de quem cordialmente ‘dissido’ neste particular (e por vezes noutros) – a propósito da palavra ‘dissidente’, quando considera que o termo não deve ser utilizado para referir opositores ou contestatários isolados dos regimes de Pequim ou de Havana. Para sustentar a sua opinião, refere que ele foi cunhado na antiga União Soviética «para designar todos quantos se afastavam da ‘normalidade’ política e social, insinuando uma espécie de doença psíquica». Se o regime dizia representar todo o povo, quem não se sentisse representado por ela só poderia então ser ‘dissidente’. Ou seja, anormal, louco e criminoso.

É parcialmente verdadeiro este referencial histórico, mas não o é inteiramente. Na verdade, a palavra surgiu de início, no ocidente, para se referir aos intelectuais soviéticos que se opunham, quase sempre isoladamente e de forma ilegal, a um regime totalitário que remetia a diferença, a divergência em relação ao pensamento único e a um sistema que se considerava a caminho da perfeição, para a esfera da marginalidade e da doença. Como era possível alguém em seu perfeito juízo, e para mais um cidadão supostamente informado, membro da intelligentsia, divergir do cientificamente determinado e comprovado, do tão indiscutivelmente justo que nem precisava ser sufragado? Foi o eco do combate desses homens e dessas mulheres – nem sempre com idêntico sentido, uma vez que agiam isoladamente ou em pequenos grupos e não constituíam propriamente uma associação com objectivos programáticos – que os revelou como… dissidentes. E para cunhar o qualificativo não foi preciso ir longe: bastou recorrer à velha palavra dissidentia, que em latim significa oposição, antipatia, desarmonia. E hoje lá vem no dicionário dissidência como o «acto de separar-se (de uma parcela de um grupo, agremiação, partido, etc.) em virtude de divergência de opiniões». Em qualquer tempo ou lugar.

Sim, Hu Jia ou Wei Jingsheng, como Guillermo Fariñas ou Yoani Sánchez, podem ser considerados dissidentes. E até o devem ser, uma vez que os antecedentes históricos do qualificativo apenas enobrecem o seu combate pelo direito a pensarem por si e a comunicarem aos outros aquilo que pensam. O direito a dissidir, o imperativo moral de viver e actuar em dissídio. Ainda que se enganem mil vezes.

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