No inverno de 1971-1972 (ou seria no seguinte?) fui algumas vezes ao Porto em missão de risco. O perigo era real (a prisão, talvez a tortura – não, não era pouco), mas apesar da possibilidade a convicção era mais forte. O objectivo era trabalhar na ligação orgânica com estudantes da mesma área e os encontros obrigavam-me por vezes a passar a noite na cidade. Atravessei algumas delas, enregelado e enroscado num cobertor nauseabundo, deitado sobre um velho sofá que jazia numa das duas únicas divisões da pró-Associação de Estudantes de Economia (ou foi antes no TUP, ó querida memória?). Para mim vinha algo de especial e de fantástico com aquelas noites. Uma certa sensação de façanha e de aventura, admito, já que o edifício fazia paredes-meias com um quartel da temida GNR. Tratava-se pois, praticamente, de dormir com o inimigo, concebendo, ao mesmo tempo, um poder sobre ele que apenas podia advir da dose de «razão histórica» da qual me supunha investido. Mas existia também, naquelas madrugadas, um momento sublime de exaltação para o combate antifascista: um enorme gravador de bobinas no qual encontrei, pela primeira vez, as canções combatentes e sentimentais de Jean Ferrat (1930-2010). Foi com a sua voz preenchendo a escuridão que adormeci algumas vezes, imaginando um país livre, projectando um mundo melhor e sem dúvida feliz. Não seria bem este onde agora habito, mas enfim, vocês sabem, un jour, un jour… «un jour d’épaule nue où les gens s’aimeront / un jour comme un oiseau sur la plus haute branche». Fico a dever alguma coisa, como perceberam, a Jean Tenenbaum Ferrat.
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