Poucos temas são tão delicados para a consciência histórica partilhada pelas esquerdas quanto o é Cuba e a sua experiência após o 1º de janeiro de 1959. Sublinho a palavra escolhida: «esquerdas» e não «esquerda», uma vez que para regressarmos ao ponto em que era possível, no mundo capitalista, uma proximidade de expectativas e de metas entre as correntes divergentes que se reclamavam do socialismo – e que se reivindicavam da esquerda como sua «casa comum» – será preciso recuarmos ao tempo em que, há mais meio século, naquela noite de São Valentim, os guerrilheiros barbudos da Sierra Maestra entraram em Havana para expulsar o ditador Batista e os seus patronos norte-americanos. Naquela altura, é bom relembrá-lo, a Revolución cubana, apesar da cuidadosa desconfiança inaugural das rígidas chefias da União Soviética e dos partidos comunistas que as seguiam, fazia o pleno da simpatia e das esperanças do que então se designava «a humanidade progressista».
Criava-se então uma «lenda de Cuba», grata desde logo a um grande número de intelectuais da esquerda ocidental, e que foi capaz de seduzir, como experiência onde era possível projectar todas as expectativas de igualdade, boa parte da juventude do mundo inteiro. A guerra de guerrilha que se seguiu ao acidentado desembarque do Granma e que conduzira em pouco tempo à derrota de um exército e de uma força aérea apoiados pelo governo dos Estados Unidos, parecia, vista de fora, algo de miraculoso. E o facto da pequena ilha açucareira, situada a apenas noventa milhas marítimas da Florida, se haver tornado o primeiro «Estado socialista» do hemisfério ocidental, não fez senão crescer essa admiração. Em The Fellow-Travellers. Intellectual Friends of Communism, David Caute observou que a revolução cubana se tornara à época «a Revolução», funcionando como um exemplo e um modelo, reforçado, sobretudo entre gerações que acabavam de despertar para a experiência política, pelo facto de parecer desenvolver-se «sem cedências», ultrapassando, assim escrevia Simone de Beauvoir, «as noções do possível e do impossível». E, aspeto não menos importante, sem copiar o figurino de qualquer dos sistemas de poder então conhecidos.
O controlo de um Estado independente por homens e mulheres sem rugas ou complexos, belos e de porte informal, romântico, que utilizavam positivamente e sem limites palavras proscritas ou depreciadas em quase todas as partes – «revolução», «rebeldia», «anti-imperialismo», «igualdade», «coletivização» ou «alfabetização» – e atuavam centradas no presente, potenciou essa simpatia que tocou intelectuais e activistas, jovens ou maduros, tão diferentes como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Régis Debray, Susan Sontag ou Hans Magnus Enzensberger. O desembarque invasor pró-americano de 1961, na Praia Girón/Baía dos Porcos, o apoio político e militar prestado pelas novas autoridades cubanas a diversos movimentos de guerrilha espalhados pelo mundo, o empenho na alfabetização maciça da população da ilha, o esforço de colectivização da maior parte da propriedade fundiária, uma indiscutível ampliação dos serviços prestados aos trabalhadores nos domínios da saúde e da educação, fariam com que a auréola de exemplaridade do regime cubano não parasse de aumentar, sendo ampliada ainda com a atividade carismática de figuras desprovidas dos maneirismos e da linguagem estereotipada dos estadistas conhecidos, como eram a de Fidel, a de Camilo Cienfuegos, ou a do singular «Che» Guevara. Os textos de Régis Debray (Révolution dans la Révolution, 1967) e de K. S. Carol (Guérilleros au Pouvoir, de 1970), na sua época muito lidos e traduzidos em diversas línguas, contribuíram, e bastante, para ampliar esse processo de mitificação do significado e da missão daquela particular estirpe de «revolucionários em movimento».
Uma imagem poderosa da ilha de José Martí como, nas palavras de François Hourmant, um «cocktail de rum branco e de aparente euforia geral», ou como localização da utopia terrena possível, onde até o trabalho possuía uma dimensão festiva, fixava-se pois em numerosos ambientes, produzindo um «tropismo cubano» com um vigor tal que ainda hoje perdura na lembrança de bastantes pessoas da geração que recebeu o seu primeiro impacto, dando forma a algumas das suas actuais convicções, ou fazendo com que outras se continuem a mostrar incapazes de criticar abertamente as autoridades de Havana, ainda que muitas das iniciativas por estas tomadas nas últimas décadas já lhes não pareçam sedutoras ou sequer justificavéis. Como escreveu o ensaísta e crítico de arte cubano Iván de la Nuez em Fantasia Vermelha, para um certo número de pessoas «Cuba não é apenas Cuba, é qualquer coisa mais», funcionando como «um pretexto para criticar um mundo ordenado sob o signo do mercado, e, por extensão, os males do capitalismo», e mostrando ao mesmo tempo que aquilo que a maior parte dos cidadãos do planeta entende como democracia representativa é para algumas delas algo de dispensável. Para estas, a frase com a qual Sartre encerrou a sua visita a Cuba – «os cubanos devem triunfar ou perdemos tudo, até a esperança» – faz ainda todo o sentido. A esperança associada à nostalgia é, de facto, uma arma poderosa.
Rui Bebiano
Dois outros posts sobre o tema que fui escrevendo e permanecem razoavelmente actuais: A imensa tristeza (já de 2003) e Relógios cubanos (de 2009).