Por causa da escusada tirada de Manuel Alegre sobre a sua honradez militar, voltou a discutir-se o papel da deserção e dos desertores na resistência ao regime salazar-marcelista e à Guerra Colonial. A posição da chamada esquerda radical é conhecida e, com ténues variantes, traduziu-se na recusa completa ao embarque para África. Já a do Partido Comunista Português foi menos linear. Politicamente coerente com a linha unitária do partido, em última instância ela remetia – e há notícias de que tal realmente aconteceu – para situações pessoais muito complexas. Compreender-se-á o que quero dizer pela leitura deste post. Fica aqui um fragmento da minha intervenção sobre o tema («As esquerdas e a oposição à Guerra Colonial») no II Congresso sobre a Guerra Colonial que decorreu em 2001 no Seixal, com organização da Universidade Aberta. Tem pois cerca de dez anos e já foi completado por investigação posterior, mas no essencial mantém-se actual. Retirei as notas e cortei partes que aqui são menos relevantes. O post é longo e num registo algo académico inabitual neste meio, mas vale a pena evocar estes episódios para diluir mal-entendidos.
O Partido Comunista fundava a sua posição numa atitude de clara simpatia e de efectivo apoio às posições defendidas pelos movimentos independentistas. Desde o início do processo, partilhava da ideia segundo a qual a emancipação dos povos coloniais e a luta do povo português pela liberdade, possuindo um inimigo comum – o governo anti-democrático e colonialista – se encontravam estreitamente associadas. Logo em Dezembro de 1961, a propósito dos acontecimentos da Índia, considerava o Avante! que «se a Nação não se levantar urgentemente para dizer não à política fascista e colonialista do governo de Salazar, à guerra sangrenta e interminável de Angola e à guerra de Goa, seguir-se-ão inevitavelmente outras guerras coloniais, (…) cujo resultado final só poderá ser um desastre nacional para o povo português». No mesmo número, aliás, inserem-se já, tal como irá sucederá em muitas edições posteriores, diversas notícias sobre formas de resistência à guerra africana – recusas ao embarque, levantamentos de rancho, propaganda nos quartéis, etc. – assim como um artigo, intitulado «Colonialismo Sangrento», no qual se denunciam as iniciativas excepcionalmente violentas de ocupação militar, de «colonização dos militares» como considerava o redactor, que no momento se encontravam a ser aplicadas no norte de Angola. Assunto retomado num texto que dará conta de atrocidades cometidas pelas tropas portuguesas e apelará, pela primeira vez, a que os próprios soldados exijam «o fim do massacre colonial», e, se preciso for, voltem «as armas contra os oficiais colonialistas que os comandam, exigindo o fim da guerra colonial e o seu regresso à metrópole»
A resistência à guerra será naturalmente mantida, e ampliada até, quando o teatro de operações se estendeu à Guiné e depois a Moçambique. Gradualmente, porém, o discurso ultrapassa a oposição pontual a uma situação que o Partido Comunista Português considerava injusta e atentatória dos interesses vitais do povo português e dos direitos nacionais dos povos das colónias, para aproximar os dois campos de luta, tomados agora como inseparáveis. Num artigo publicado pelo Militante em Outubro de 1964, essa posição é já bastante nítida, acentuando-se aí, a partir do axioma, aplicado por Marx ao domínio da Irlanda pelo governo inglês e de acordo com o qual «não pode ser livre um povo que oprime outros povos», que os interesses dos sectores da burguesia monopolista ligada à exploração colonial se articulavam com o poder que esta internamente detinha, reforçando a exploração exercida sobre os trabalhadores portugueses dentro do território metropolitano. Escreve-se, por isso, que Portugal «seria um país mais progressivo se não tivesse colónias», e, em consequência, que a guerra colonial representa «um centro onde vão dar todas as lutas da classe operária e do nosso povo».
A forma efectiva de conduzir a luta interna contra a guerra irá no entanto evoluindo, no sentido de se considerar ser este um combate prioritário mas que poderá, e muitas das vezes deverá, ser separado de outras das frentes da actividade dos comunistas e da oposição. Por este motivo, não é de estranhar que muitos dos números do órgão central do PCP não contenham referência alguma, ou o façam de forma breve, em relação aos acontecimentos da guerra e à organização da oposição à mesma. Parece legítimo, aliás, supor que a definição programática da necessidade de organizar uma «Revolução Democrática e Nacional», definida em Setembro de 1965 no VI Congresso do partido com base no relatório de Álvaro Cunhal intitulado Rumo à Vitória, se encontre na origem dessa posição: as tarefas prioritárias, cuidadosamente identificadas e ordenadas aí segundo a sua importância na definição das prioridades de luta do partido, atribuíam um papel, é verdade, ao «reconhecimento aos povos das colónias do direito à independência» e às formas de resistência à guerra empreendidas por militares no activo, mas não consideravam esta como uma batalha absolutamente prioritária. Portugal, «país colonizador e colonizado», que «tem um Ultramar porque é um ‘Ultramar’ para os outros», deveria em primeiro lugar abandonar esta segunda condição, para melhor poder anular a primeira. Abater o regime para poder depois conversar com os outros. O «internacionalismo, elemento integrante do marxismo» é regularmente invocado para legitimar a solidariedade combativa do povo português com os povos dos territórios coloniais, mas esta passa em primeiro lugar pela luta que este trava internamente contra um regime opressor.
Aí radica também a atitude do PCP em relação ao problema da deserção. Por razões políticas mas também de consciência, o tema – […] um dos principais pontos de discórdia com a extrema-esquerda – será levantado em diversos momentos. Aquilo que, timidamente, os socialistas só já nos inícios da década de 70 começarão a reconhecer – o facto de a juventude, de modo crescente, não dever «reconhecer ao governo da ditadura fascista autoridade para a obrigar a fazer uma guerra colonial» – já os comunistas adiantavam desde o início da guerra. Será todavia por volta de 1965-1966 que a defesa da deserção como atitude louvável ou mesmo revolucionária passa a ser temperada pelo enquadramento desse momento de combate individual ao regime em termos dos objectivos políticos partidários. Neste sentido, será fundamental a publicação, no Militante, de um documento que tinha como título a expressão programática: «Criar uma forte organização militar é uma das tarefas mais urgentes do Partido».
Atribui-se nele uma enorme importância à organização dos comunistas nos quartéis e à propaganda junto dos soldados, apontando um conjunto de alvos: «contra a guerra das colónias, contra a violência das manobras e exercícios militares, contra as injustiças e vexames vindos dos oficiais e comandos fascistas, contra a intromissão de oficiais estrangeiros e a instalação de bases estrangeiras em território nacional, contra a política de traição nacional do governo fascista, contra o terrorismo político e a repressão, contra a ausência de liberdades democráticas.» É porém o tema de deserção aquele que maior desenvolvimento merece neste documento. Declara então O Militante: «É sabido que o partido não só se não opõe, mas preconiza e aplaude a deserção de soldados, sargentos e oficiais que não querem participar nas criminosas guerras coloniais. (…) A organização de deserções colectivas (…) devem portanto continuar e intensificar-se tanto quanto possível». Esclarece-se porém que o partido «no que se refere aos seus militantes, não pode apoiar a deserção quando ela se faça isoladamente», uma vez que tal corresponderia a privar muitos jovens de serem esclarecidos, dentro das próprias forças armadas, sobre o carácter negativo da política colonial do governo. Diz-se mesmo: «Na luta contra a guerra colonial, os comunistas têm de ir tão longe quanto possível, inclusive até às frentes de batalha, sempre com o objectivo de esclarecer os outros soldados que não devem combater, que não devem arriscar a vida para defender os interesses dos monopolistas e outros inimigos da Pátria». De igual forma, exclui-se a deserção antes de assentar praça ou mesmo da ida à inspecção, perguntando-se: «como conciliar a atitude destes camaradas com os objectivos da revolução se eles fogem inclusive a aprender o manejo das armas?» Pouco tempo depois, juntar-se-á, em novo artigo, um esclarecimento complementar: «O Partido desaprova as deserções individuais dos membros do Partido, os quais só poderão desertar quando estão em risco eminente de serem presos como consequência da sua acção revolucionária ou quando acompanharem deserções colectivas.»
A verdade é que, sensivelmente a partir dos meados de 1968, as referências à guerra, e sobretudo à forma de lhe fazer frente, tornam-se raras nas páginas do Militante, mas tal não parece corresponder a um menor empenho do PCP nesta área do combate político, uma vez que o Avante! prossegue, agora já com grande regularidade, a sua campanha de denúncia da situação militar. Assim, em 1969, com Salazar apeado do poder, publica-se um longo documento de estratégia política, no qual é claramente declarado que «a questão colonial é uma questão central da política portuguesa», ainda que se insista mais nas consequências do sistema colonial para o reforço dos sectores sociais dominantes do que se procure desenvolver linhas de resistência activa. A primavera marcelista parece, também neste domínio, suscitar algum compasso de espera. Mas em Janeiro de 71, quando a sua falência se mostra já inevitável, o jornal volta à carga com uma extensa e dura tomada de posição. Nela se pode ler: «O povo português exige o fim imediato da guerra colonial, (…) a abertura de negociações com os legítimos representantes dos povos das colónias (…), o reconhecimento do direito desses povos à completa e imediata independência.»
O desenvolvimento de posições de combate mais directo contra as guerras coloniais, por parte dos comunistas, travar-se-á ainda dentro de um outro enquadramento organizativo. Concretamente através da sua actividade dentro da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN), proclamada em Dezembro de 62 e com sede definitivamente estabelecida, a partir de 64, em Argel. Integrando sectores diversos da oposição, que incluíam inicialmente o próprio general Delgado, a FPLN desenvolverá uma permanente actividade de oposição ao regime salazarista, a qual, para além da prática organizativa e conspirativa, integrará uma notável actividade de propaganda, que passará pela manutenção da Rádio «Voz da Liberdade» – cujo «rosto» foi durante anos, para muitos portugueses que a ouviam religiosamente, a voz de Manuel Alegre – e pela publicação de importante quantidade de material impresso, destinado tanto à emigração como ao interior. Num e noutro dos casos, a actividade de militância contra a guerra ocupará sempre um lugar de primeiríssima importância.
Em 1965 começa a ser editado o Passa Palavra, o «órgão dos militares da FPLN», que sugere formas de organização e de protesto, nomeadamente através da recusa à disciplina, mas que, durante algum tempo, evitará sugerir a deserção. Esta virá a tornar-se, no entanto, uma das bandeiras da Frente, o que deverá ter sido possibilitado pelo abandono das hostes delgadistas, nada simpatizantes de práticas tão marcadamente anti-militaristas. Logo no primeiro número, o Liberdade, órgão oficial da renovada FPLN, trará então um artigo no qual o tema é levantado, e algum tempo depois o assunto merecerá a divulgação de sugestões claras a quem lesse esta imprensa: «Para quê continuar a sofrer nesta maldita guerra? (…) Desertemos!», exclama, mencionando dados impressionantes sobre o volume de refractários e de desertores. Pouco antes, tinham já sido divulgadas sugestões de combate contra a guerra claramente próximas das propostas do PCP: «Finge que combates, mas evita tanto quanto possas perseguir os patriotas africanos. (…) Organiza a deserção e a revolta contra a guerra (…). Procura o contacto com os movimentos de libertação e prepara a tua deserção e a daqueles camaradas da tua confiança.»