Na China de hoje, Zhao Ziyang é uma pessoa que não existe. Foi primeiro-ministro desde 1980 até 1987, quando o secretário-geral do Partido Comunista era Hu Yaobang, tendo-o substituído no cargo entre 1987 e 1989. Hu e Zhao partilharam, sob a tutela de Deng Xiaoping, a direcção do processo de liberalização económica, de reforma do Estado e de abertura ao exterior vivida nos anos de transição da era pós-Mao. Mas ambos foram abandonados pelo seu protector quando começaram a considerar a possibilidade de separar o Partido do Estado e de permitir uma maior liberdade de opinião. No caso de Zhao, a queda foi precipitada pela forma como, em Abril e Maio de 1989, lidou com os protestos estudantis da Praça Tiananmen, que a ala mais conservadora, chefiada por Li Peng, entendeu dever ser tratada com punho de ferro. Zhao recusou assumir essa responsabilidade, tendo então sido afastado do poder e colocado sob prisão domiciliária até à morte, ocorrida em 2005. Prisioneiro de Estado apresenta parte substancial de um registo, gravado sob cativeiro em 30 cassetes de baixa qualidade preservadas por terem sido escondidas entre os brinquedos dos netos, no qual aborda a sua versão dos acontecimentos e faz um balanço dos anos na gestão do Estado.
A sequência escolhida pelos editores – um deles, Bao Pu, é filho do secretário pessoal de Zhao – não é a das gravações, procurando antes atribuir uma ordem temática a declarações que muitas vezes misturavam assuntos. A parte mais intensa é a primeira, na qual se relatam os acontecimentos de Tiananmen e o combate então travado dentro dos órgãos directivos do Partido. Trata-se de um relato diferente do oficial, que penaliza a intervenção do sector conservador mas nem por isso é completo, uma vez que não considera as reivindicações daqueles que realmente fizeram no movimento de rua. Segue-se uma descrição, detalhada, por vezes um pouco enfadonha mas historicamente interessante por constituir também uma versão alternativa da consagrada oficialmente, da luta de Zhao Ziyang para aplicar as reformas políticas e económicas que propunha. Ao longo de todas estas páginas, porém, surge clara a forma como a sua posição jamais beliscou os fundamentos do regime, apenas tendo sido tornada inconveniente devido à inflexibilidade da ala que se opunha ao enfraquecimento da centralidade do Partido e do controlo estatal do sistema produtivo, apenas deixando uma maior margem de manobra para as modificações do mercado.
«Um olhar íntimo sobre um dos regimes mais compactos do mundo», escreve-se na badana. O principal interesse deste livro é realmente permitir-nos observar, a partir de dentro, a permanente luta de facções, de interesses e de vaidades que se esconde por detrás do aparente monolitismo do Partido e do regime. Nele não está, aliás, incluído o desenvolvimento protagonizado por Zhao nos últimos anos de vida, quando chegou à conclusão de que, para progredir, a China viveria melhor sob um sistema parlamentar capaz de impedir a concentração excessiva do poder e o consequente imobilismo. Afinal, quem fala aqui é ainda o comunista tranquilo e sorridente, o «Gorbatchev chinês» que a História derrotou.
Publicado na revista LER de Abril
Prisioneiro de Estado. O Diário Secreto de Zhao Ziyang. Ed. por Bao Pu, Renee Chiang e Adi Ignatius. Trad. de Ana Glória Lucas. Casa das Letras, 364 págs.