Foi um acto de justiça, e de uma justiça justa, a atribuição do prestigiado Prémio Príncipe das Astúrias em Letras – concedido nos últimos anos a Claudio Magris, Nélida Piñon, Paul Auster, Amos Oz, Margaret Atwood e Ismail Kadaré – ao romancista, ensaísta e antigo repórter Amin Maalouf. Todo o seu trabalho se confrontou sempre com a convergência e a complexidade dos mundos que pôde partilhar: libanês de família cristã, nascido em Beirute e criado no Egipto, viveu grande parte da vida entre muçulmanos, mas reside actualmente em Paris, tendo o árabe como língua nativa e escrevendo agora em francês. O reconhecimento internacional foi rapidamente obtido a partir de 1986 com a publicação dos seus primeiros romances históricos, de um género então considerado um tanto fora de moda. Leão, o Africano, Samarcanda, Os Jardins de Luz ou O Rochedo de Tanios, foram nessa altura, todos eles, muito elogiados e rapidamente traduzidos num grande número de línguas. Menos consensuais têm sido, porém, os ensaios de Maalouf. As Cruzadas Vistas pelos Árabes foi publicado muito cedo, em 1983, e propunha ao leitor ocidental uma representação «anti-épica» da iniciativa dos cruzados cristãos, descritos pelos muçulmanos que haviam recebido o seu agressivo impacto como invasores, cruéis e ignorantes. Como bárbaros, de facto. Uma perspectiva que agradou rapidamente a muitos leitores, críticos das leituras que permaneciam hegemónicas no Ocidente a propósito da relação entre este e um mundo islâmico observado como ninho de desprezáveis infiéis. Todavia, o consenso começou a ser rompido com a publicação de Identidades Assassinas (1998) e agora de Um Mundo Sem Regras (2009). Porquê? Os dois passos destes livros que se transcrevam definem com alguma clareza o sentido de uma possível resposta. Ao mesmo tempo que reforçam a justeza e o elevado valor simbólico do prémio agora conferido.
«Tudo o que diz respeito aos direitos fundamentais – o direito de viver como cidadão de pleno direito na terra dos seus antepassados sem sofrer perseguições ou discriminações; o direito de viver com dignidade, onde quer que alguém se encontre; o direito de escolher livremente a sua vida, os seus amores, as suas crenças, no respeito da liberdade dos outros; o direito de aceder sem entraves ao saber, à saúde, a uma vida decente e honrada – nada disto, e a lista não é restritiva, pode ser negado aos nossos semelhantes sob o pretexto de preservar uma crença, uma prática ancestral ou uma tradição. Neste domínio, será necessário inclinar-nos em direcção à universalidade, e mesmo, se necessário, em direcção à uniformidade, porque a humanidade, mesmo sendo múltipla, é, em última análise, uma só.» (As Identidades Assassinas)
«O que eu censuro hoje ao mundo árabe é a indigência da sua consciência moral; o que eu censuro ao Ocidente é a sua propensão para transformar a sua consciência moral num instrumento de dominação. Duas acusações pesadas e para mim duplamente dolorosas, mas que não posso deixar de fazer (…). No discurso de uns procurar-se-ia em vão os vestígios de uma preocupação ética ou a referência a valores universais; no discurso dos outros estas preocupações e estas referências estão omnipresentes, mas são utilizadas selectivamente e constantemente desviadas a favor de uma política. O resultado é que o Ocidente não cessa de perder a sua credibilidade moral, e os seus detractores não têm nenhuma.» (Um Mundo Sem Regras)