Publicado originalmente, por convite, no Delito de Opinião
A palavra vilipêndio quase desapareceu do nosso vocabulário. Chegou do latim vilipendĕre, composto de vilis, vil, e de pendĕre, considerar, estimar. Exprime uma atitude de menosprezo em relação a alguém. Quando tornada pública, deprecia a pessoa a quem se aplica. Não se limita a expor divergências, a contrariar opiniões: aplica-se ad hominem, contra a pessoa, servindo-se discricionariamente das palavras ou dos juízos que a possam diminuir perante os outros. Neste caminho, o vilipêndio é insulto e difamação, pois não existe qualquer intenção argumentativa. O objectivo é um só: apoucar, amesquinhar, retirar ao outro qualquer estatuto de dignidade. No limite, procurar que este perca todo o crédito, de modo a que se torne fácil isolá-lo, silenciá-lo, escondê-lo, fazendo com que muitas pessoas, honestas mas desavisadas, se recusem a lê-lo ou a ouvi-lo. «Ah, aquele tipo! Um sacana!».
Não se trata de uma prática recente, obviamente, mas ganhou maior destaque social a partir de Oitocentos. Associada à explosão da imprensa periódica pôde então ampliar o seu efeito, servindo muitas vezes para arruinar carreiras, motivar processos judiciais, forçar duelos com um final pouco feliz. O novo meio ajudou aliás a «impessoalizar» o vilipêndio, uma vez que o seu autor passou actuar por detrás de uma cortina, ou de uma almofada, fornecida pela publicação que acolhia os ataques pessoais. Já no século XX, os servidores dos sistemas totalitários e os sectores políticos que se presumiam detentores da verdade, fosse ela «histórica» ou «científica», recorreram de um modo sistemático a este processo, apoiados na impunidade que os sistemas lhes ofereciam e na impossibilidade de exercício do contraditório.
Na antiga União Soviética, o método foi aperfeiçoado e usado de forma contínua a partir do final da década de 1920, fundando-se nele o processo de diabolização e de apagamento de figuras que tinham sido determinantes na própria construção do poder bolchevique, como Trotsky, Radek, Zinoviev, Kamenev ou Bukarine. No Portugal de Salazar como no Chile de Pinochet, qualquer opositor era «comunista». Na Cuba do presente todo o acusado de dissídio é publicamente rotulado de «agente da CIA» ou, no mínimo, de «anti-social». E mesmo na Europa democrática o método foi recorrentemente aplicado na tentativa de isolamento e diminuição de figuras num dado momento consideradas pouco ortodoxas, como Léon Blum, George Orwell, Albert Camus, Hannah Arendt e Raymond Aron, cuja «lenda negra» ainda hoje perdura em alguns ambientes, tal o volume, a constância e o impacto das injúrias e manipulações das quais foram objecto.
Mas se a palavra caiu em desuso, a prática do vilipêndio sobreviveu-lhe claramente, associada a formas de comunicação próprias das sociedades contemporâneas. Os tablóides são uma delas. Podemos, sem dúvida, esconjurar o seu interesse ou diminuir o seu valor – «as pessoas que lêem tablóides merecem que lhes mintam», disse há tempo Jerry Seinfeld – mas a verdade é que são um produto incontornável da democratização da informação. E os profissionais da calúnia, e da desinformação que lhe está associada, já o perceberam há bastante tempo. Outro processo situa-se hoje no espaço dos blogues. Com um meio poderoso e fácil de criar e de utilizar, sem a interposição de conselhos editoriais, sem uma clara responsabilização das autorias por aquilo que escrevem ou deixam escrever, muitas vezes recorrendo ao anonimato ou a pseudónimos flutuantes – e muitas vezes também com o apoio de alguns leitores, outrora silenciosos mas agora transformados em «comentadores» –, é nele que actualmente se concentra talvez a parte mais significativa da «indústria da calúnia».
Apesar da Internet ter fronteiras permeáveis, não precisamos sair de Portugal para encontrar um grande número de blogues nos quais muitos dos colaboradores se especializam em vilipendiar pessoas, preferindo a afronta personalizada, o epíteto leviano, a uma identificação clara e frontal, mas honesta, das divergências. E geralmente quanto maior é o volume de injúrias, de afirmações caluniosas sem qualquer dimensão crítica, tanto maior é o número dos acessos públicos ao blogue e a ascensão deste nos rankings da popularidade, competindo com as folhas de sexo e de futebol. Não há muito a fazer perante isto, como é evidente. Talvez esperar que as pessoas realmente interessadas na reflexão, na opinião crítica, numa informação ponderada e completa, encontrem os seus próprios caminhos e resistam ao cerco do ódio e da maledicência. E deixem os dejectos da blogosfera a flutuar no seu mundo de vuvuzelas e violência. Conviver com tudo isto é afinal um pequeníssimo preço que se paga por viver em democracia. Julgo que vale a pena pagá-lo.