Arquivos Mensais: Agosto 2010

Pode lá haver combate mais justo?

Sakineh

Como aconteceu em outras 110 cidades do mundo inteiro – para ser mais exacto, em 111 cidades daquela parte do mundo na qual as pessoas comuns se podem auto-organizar e expressar publicamente os seus protestos, alegrias e opiniões – decorreu ontem em Lisboa a manifestação contra a morte por lapidação de Sakineh Ashtiani e a pena capital praticada no Irão por crimes de natureza moral e religiosa. O número de participantes presentes varia segundo as diferentes fontes, mas pessoas em quem confio coincidem ao apontar para cerca de meio milhar de pessoas. Não é um mau número para uma tarde tórrida de um sábado de Agosto. Sabendo-se além disso que as lutas pelos direitos humanos – especialmente os dos outros – raramente são muito participadas, independentemente da latitude na qual se travam. No entanto, no caso do protesto de Lisboa, é possível detectar algumas forças que por omissão ou esforço de contra-propaganda concorreram para que a mobilização não fosse um pouco maior. São particularmente visíveis na Internet, sobretudo nos blogues nacionais e no Facebook, não sendo despropositado o termo de comparação uma vez que foi aqui que a iniciativa arrancou e foi por estas duas vias que indignação das pessoas foi mobilizada.

Detectam-se razões que têm a sua origem no sectarismo mais ortorrômbico («ah, mas foram fulana e beltrano que são do partido xiz a organizar aquilo!»), numa confusão desajustada das prioridades («há lutas bem mais importantes, camaradas»), numa incurável cegueira política («trata-se de uma intromissão na autonomia de um Estado soberano») ou no desvairamento mais completo e a precisar de tratamento urgente («foram a CIA e a Mossad que financiaram e organizaram esta miserável campanha»). Para além, claro, do silêncio dos partidos políticos, para quem o conceito de solidariedade para com a injustiça, de denúncia da perseguição política e de defesa dos direitos humanos dependem dos programas e não das pessoas. De sublinhar, a este respeito, a ausência completa de uma palavra ou de um gesto de apoio, ainda que informal ou a título individual, por parte de responsáveis do PCP. Ou o «esquecimento» público do governo português perante este caso. São factos bem evidentes, que importa anotar para sabermos com quem podemos contar sempre quando se trata de situações que têm a ver com a defesa de vidas humanas sob pressão ou em risco imediato. Nesta situação concreta com a vida de uma mulher em vias de ser punida, – e em primeiro lugar justamente por ser mulher –, da forma mais bárbara e atroz que é possível conceber-se. Pode lá haver combate mais justo, valor mais importante, «opção táctica» mais legítima?

Adenda a 31/8: Entretanto o PS (não o governo da nação com voz perante as nações) lançou um apelo ao governo do Irão, e um bloguista militante e vigilante do PCP (não um seu actual responsável) chamou a atenção para este caso e recorda-o dramaticamente urbi et orbi. Fazem bem, uns e outro. Não fazem, organização e pessoa, senão o seu dever.

    Atualidade, Democracia, Opinião

    Palavras que esclarecem

    as palavras

    Fora dos territórios controlados por regimes ou movimentos de inspiração autoritária, o direito de cada um a dizer aquilo que entenda é, em princípio, total. Como total é o direito dos outros a contradizê-lo, mesmo da forma mais frontal. Ou a responsabilizá-lo, se for preciso. Em democracia, o direito à palavra é inalienável, seja ela a do electricista, a da varina ou a do operador de guindastes. Isto aplica-se também, naturalmente, à recente polémica em redor das afirmações de António Lobo Antunes sobre a sua experiência da Guerra Colonial. Nelas o escritor referiu «factos» que declarou ter presenciado e que se traduziram em generalizações abusivas sobre o comportamento dos militares portugueses durante a Guerra Colonial. Nada do que Lobo Antunes contou se encontra provado, e nenhum outro testemunho, entre centenas de milhares de pessoas envolvidas no conflito, aflora sequer situações como aquelas que mencionou. Por isso, é muito natural que quem possua diferente perspectiva presencial da experiência da guerra se sinta incomodado pelos ecos de uma memória inventada e reaja com veemência. Podem fazê-lo outros ex-militares, antigos guerrilheiros, colonos de torna-viagem, jornalistas, historiadores e cidadãos informados. No que me toca, posso dizer que jamais me constou que pudessem ter ocorrido, de forma sistemática, apelos institucionais declarados à prática da chacina ou da tortura pelos soldados portugueses, embora, evidentemente, estas tenham acontecido em alguns momentos. Por isso, não tenho dúvida alguma em afirmar que o que Lobo Antunes referiu como experiência corresponde, no máximo, a situações pontuais a partir das quais fez generalizações desajustadas.

    Mas a reacção de uns quantos militares portugueses, com maiores ou menores responsabilidades na condução da Guerra em África, é completamente desproporcionada e absurda, digna apenas de quem desconhece a essência da diferença de perspectiva e do direito à livre expressão próprios das sociedades democráticas. Ameaçar dar «um par de murros em público» ou «ir ao focinho» do escritor – a quem chamam aliás «bandalho» e… «atrasado mental» –, é, para além da bravata recorrente nos códigos de conduta de muitas dessas pessoas, algo de inaceitável e que configura um apelo à violência e mesmo ao crime. Alguém deveria explicá-lo a estes cidadãos, que no passado se limitaram a acatar ordens e, em muitos casos, a pactuar, activamente ou pelo silêncio, com uma guerra injusta que insistem em conservar «limpa». O coronel Carlos Matos Gomes, que escreve romances sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz e não faz parte deste grupo, lembrou a propósito: «Há sempre uns patrioteiros que surgem assim no final destas coisas e penso que será também um sinónimo de senilidade. Penso que não faz sentido algum, nem da parte do Lobo Antunes, como ex-combatente, nem da parte destes militares». Juntando, com algum sentido crítico, que «na patetice estão bem uns para os outros». Realmente, a resposta de António Lobo Antunes, dizendo não ter «medo do confronto físico», e estar até em estado de prontidão para um eventual encontro cara a cara com os militares ressabiados, não ajuda muito e é desnecessária. A democracia não se funda na força dos punhos mas na energia das palavras que esclarecem. E isto aplica-se também a militares e a escritores.

      Atualidade, História, Memória

      «Pseudo-intelectuais»

      Lelouch, Godard e Truffaut em Maio de 1968

      Não começou ontem o hábito de usar o qualificativo de «pseudo-intelectual» como maneira de desconsiderar alguém. Mas o costume vulgarizou-se nos últimos tempos, associado à depreciação pública do próprio conceito de intelectual. Numa sociedade na qual o nível de escolarização média e superior cresceu consideravelmente, mas onde o saber técnico é continuamente privilegiado em relação à cultura de base humanística, detecta-se um conflito entre aquilo que resta do antigo prestígio dos intelectuais – combatentes com voz por um saber engagé – e a atitude de um grande número de pessoas que ainda recolhe um eco desse prestígio mas é incapaz de o compreender. Por este motivo, tem alastrado um enorme equívoco capaz de levar a que alguém que ainda transporte consigo algumas das marcas desse antigo intelectual se transforme facilmente num «pseudo-intelectual», num ser caprichoso, especialista em pomposas futilidades. Ou seja, por definição, quem esgrime publicamente por ideias, quem cria e se esforça por fazer ecoar aquilo que criou, passou a ser para muitas pessoas de cultura mediana e standard um «falso intelectual». Com manias de sê-lo sem a percepção de que o será apenas para si e para uns quantos próximos. Se tanto.

      Sem entrar no debate, já com décadas, sobre o hipotético fim dos intelectuais ou a indesmentível reformulação do seu lugar social, interessa aqui rememorar algumas banalidades fundadoras da sua condição resvaladiça. O Dicionário Houaiss destrata a palavra reduzindo-a à condição precária do adjectivo, aplicando-a apenas àquele «que vive predominantemente do intelecto» – e se opõe, portanto, a quem viva da actividade manual – ou então ao que demonstra «gosto e interesse pronunciados pelas coisas da cultura, da literatura, das artes». Exclui pois, ou pelo menos ignora, o sentido histórico e substantivo, que contribuiu para reforçar o prestígio original do intelectual, associando-o à experiência da cidadania, atribuindo-lhe um lugar central na agitação das ideias ou na legitimação das causas, assegurando um papel fulcral na vida cultural, não como simples espaço de devaneio e divertimento mas como território para a afirmação de um dever e de uma necessidade, fundamentais para a existência e o progresso das sociedades complexas.

      Deste ponto de vista, André Malraux terá sido um protótipo do intelectual em estado bruto: escritor, resistente, aventureiro, teórico da arte, iniciador das «maisons de la culture» e inventor do primeiro Ministério da Cultura. Sartre foi-o também, como modelo do intelectual empenhado, defendendo que o escritor não é neutro frente à realidade histórica e social: «O escritor empenhado sabe que palavra é acção, sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão fazendo por mudar». Para o filósofo existencialista, e durante algum tempo proto-marxista, no contexto da sociedade capitalista será aliás impossível manter o sonho da imparcialidade diante da condição humana. Na sua opinião, «a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele». O escritor pensa, fala, escreve então assumindo essa experiência como resultado de uma necessidade, de um impulso sem o qual não pode ser verdadeiramente escritor. E o intelectual é-o como expressão de um destino socialmente partilhado, indispensável para a mudança do mundo.

      O uso indiscriminado da noção de «pseudo-intelectual» advém pois do recuo desta ideia. Não tanto de uma abordagem objectiva da relação justa ou injusta de alguém com uma criação projectada no social ou com o combate público por certas ideias. Nos últimos tempos, o abuso do qualificativo – e a blogosfera é particularmente rica neste particular – tem correspondido pois, quase sempre, mais a uma desvalorização do pensamento livre e livremente comunicado do que a uma crítica, que até poderia ser justa, aplicada directamente a quem, «pseudo», «falso», exponha ideias que são apenas um simulacro de reflexão, conhecimento, ousadia e convicção.

        Olhares, Opinião

        No/do gueto

        cigano

        As medidas tomadas em França por Sarkozy para repatriar um grande número de ciganos, rapidamente aclamadas e consideradas até insuficientes pelo governo italiano de direita, colocam-nos perante um problema real, desde há muito à nossa frente mas que insistimos em empurrar para um lugar invisível. Para a maioria dos gadje, os não-ciganos para os roma, estes são figuras incómodas, arrumadas sempre em último lugar numa possível ordem da inclusão social. Por muitas razões, umas com fundamento histórico, outras circunstanciais, outras ainda resultado do mero preconceito de natureza racial: são nómadas numa sociedade estruturalmente sedentária, vivem em larga medida de uma economia paralela e à margem de qualquer planificação, resistem a aceitar formas de autoridade que não a familiar, não se conformam com direitos e deveres que lhes são impostos, têm muitas vezes atitudes problemáticas em relação aos direitos das mulheres, à civilidade do quotidiano, à propriedade, à educação e ao trabalho. São diferentes e não o são apenas por razões de natureza genética. Mas essa diferença paga-se e os roma têm-na pago de forma constante e muitíssimo pesada. Perseguidos, escorraçados, encarcerados, massacrados ou simplesmente ignorados, como cães, desde que há cerca de mil anos atravessaram o grande planalto iraniano e entraram na Europa.

        No entanto estimam-se actualmente em perto de dez milhões apenas nos Estados da União Europeia – 40.000 em Portugal e cerca de vinte vezes mais em Espanha – e são cidadãos de pleno direito, pois código algum estipula que essa cidadania seja cerceada por motivos de natureza racial ou condicionada pela forma como cada um ocupa o seu tempo. Nasceram aqui, em solo europeu, como aqui nasceram também os seus pais, avós, bisavós, trisavós, até uma época para «eles» e para «nós» imemorial. Por isso não podem ser tratados como intrusos aos quais se recusa um visto e que se empurram para as margens da História, do desenvolvimento e mesmo da sobrevivência. Existem graves problemas de inclusão social dos ciganos, sem dúvida, e não vamos dizer que a culpa é toda e apenas dos gadje, pois muitos ciganos insistem ainda na auto-exclusão como forma de salvaguardar uma identidade que consideram ameaçada. Ou então por mera inércia. Mas a forma de resolver esses problemas será sempre pela via da comunicação intercultural, privilegiando a iniciativa de mediadores válidos e credíveis, que procurem encontrar soluções e não apenas resolver desagradáveis incómodos. Não é, jamais será, pela via de um paternalismo emanado de uma cultura sedentária que se crê superior e modelar. E muito menos pelo caminho da «guetização» repressiva, seja ela feita no recanto de um subúrbio, em bairros isolados ou em áreas remotas de países periféricos. Falar é, neste caso, quase sempre difícil. Leva o seu tempo e dá trabalho. Mas é o único percurso possível. O outro apenas conduz ao desentendimento e à opressão.

          Atualidade, Democracia, Opinião

          Norma, a leitora

          Marilyn e Arthur Miller

          Não se tratou apenas uma intuição, suscitada por uma ou outra imagem de uma sensualidade menos óbvia e nitidamente mais despojada de Marilyn. Sempre me pareceu que o estereótipo foi exagerado e deformante – como todos os estereótipos –, além de francamente injusto. Indícios aqui e acolá. Em entrevistas que não eram de promoção, poses menos condicionadas pelo fotógrafo, informações a conta-gotas e transmitidas por portas travessas, vindas de pessoas que com ela um dia se cruzaram. Agora parece que se confirma: a menina Norma Jean não tinha apenas os diamantes como os seus melhores amigos. Gostava muito de ler e não correspondia bem ao protótipo da loura burra das piadas de subúrbio.

            Apontamentos, Cinema

            Causas selectivas

            A pedra

            O movimento internacional contra a lapidação até à morte imposta em muitos Estados islâmicos para «crimes» de natureza ética e religiosa envolvendo principalmente mulheres tem vindo a aumentar e a mostrar-se cada vez mais activo. A campanha em curso contra a execução da iraniana Sakineh Ashtiani, condenada «por adultério» após confissão sob tortura, integra essa vaga, dando corpo a um combate humanitário particularmente dramático e urgente. A maior parte desta mobilização é feita, como seria de esperar, em países com regimes democráticos, pois só nestes a informação pode circular com razoável liberdade e só nestes também os cidadãos se podem bater por causas como esta sem se verem igualmente perseguidos. A movimentação tem agregado sempre pessoas de diferentes partidos, distintas convicções, cidadãos e cidadãs com ou sem bilhete de identidade política, com ou sem religião. Pessoas unidas apenas, e não é pouco, pela repulsa e a indignação contra uma punição injusta e monstruosa.

            Em Portugal tem sido assim também. De assinalar, porém, o silêncio do jornal Avante!, que apenas surpreenderá quem ande um pouco distraído. Não se trata sequer de justificar a escusa em participar, ou o desinteresse por referir minimamente a situação, com o decrépito e repisado argumento de que existem causas mais próximas e mais urgentes. Ou de avançar, uma vez mais, o triste raciocínio de acordo com o qual erguer a voz em situações deste género só beneficia os mais inconfessáveis interesses americanos ou a vil propaganda sionista. Trata-se de ocultar, de evaporar, de riscar da agenda política uma causa como esta, mostrando um frouxo sentido de justiça e de solidariedade, espartilhado pelo sectarismo e pelo preconceito. Na prática – quem cala, consente –, enunciando antes um pacto com a injustiça. Nada que espante um grande número de cidadãos com memória das «causas selectivas» apropriadas ou ignoradas pelo PCP ao sabor da sua agenda imediata e da sua astigmática visão de um mundo mais justo e igualitário. Mas convém ir anotando estas situações.

            [Mais informação e links relacionados com esta campanha no post «Não é possíveis calar».]

              Atualidade, Democracia, Opinião

              Desesperar é preciso

              discussão

              Sublinho Santiago López-Petit, em A Mobilização Global, enquanto penso nesta cultura do um contra o outro apresentada como único cenário do futuro sem esperança em nome do qual tudo nos é pedido.

              «Estamos sós face ao mundo. Ou, o que é o mesmo, interiorizámos aquilo que os nossos governantes nos repetem incessantemente: ‘a vossa situação depende apenas de vós mesmos’. E acreditamos que é assim. Temos nós próprios que sair do atoleiro, o que dito pelas palavras próprias da cultura empresarial significa que temos de nos avaliar continuamente. Contra nós mesmos, contra os trabalhadores dos outros países que se esfalfam por conseguir a mesma produção cobrando menos. Incerteza que gera insegurança, insegurança que produz medo. Medo do outro que é como eu. Medo do outro, que é estrangeiro, porque não é como eu. (…) O [novo] estado de natureza alastra como um mar enfurecido até cobrir-nos por completo.»

              E mastigo a certeza de que a esperança apenas pode nascer do desespero.

                Apontamentos, Democracia, Devaneios

                Requiem marítimo

                Sagres

                Como a larga maioria dos portugueses, pouco andei de barco ou em meios de locomoção afins. Mesmo os trajectos africanos foram percorridos de avião. Recordo-me de umas quantas remadelas em lagos artificiais ou modestos riachos, de duas viagens de cacilheiro e de uma travessia do estreito de Gibraltar. Também andei algumas vezes de «gaivota». Ou melhor, pedalei com força para deslocar o veículo. Muito mais do que isso só a bordo do Kon-Tiki de Thor Heyerdahl, do Calypso de Jacques Cousteau, do Relâmpago do Corsário Negro e no paquete onde se desenrolou aquele enredo «anarquista» – que valeu uma proibição em diversos países – de Monkey Business, o filme dos Irmãos Marx. Para além, claro, de ter ido por diversas vezes ao fundo com o Titanic. Isto é, apenas andei embarcado em imaginação. Mas sei o suficiente de História e de caminhos marítimos para perceber que o navio-escola Sagres tem funcionado como definitivo avatar da nossa autorepresentação enquanto «navegantes». Por isso a proibição de atracar em Macau dada ao veleiro pelo governo chinês é particularmente humilhante. E por isso não é aceitável que as autoridades portuguesas se limitem a achar o facto mais ou menos normal. Sem um lamento, um protesto, um epitáfio. Restam-nos assim os ferry-boats fretados. E, a mim, realizar a adiada travessia do Atlântico entre Portimão e o Funchal. A bordo do indomável Volcán de Tijarafe.

                  Atualidade, Devaneios, Olhares

                  Não é possível calar

                  Salvem Sakineh Ashtiani

                  Já em curso um movimento internacional alargado contra a morte por apedrejamento praticada como punição em alguns países islâmicos e para salvar a vida da iraniana Sakineh Ashtiani. Sem preconceitos ou sectarismos e passando por cima dos partidários da justiça selectiva, para quem os direitos humanos possuem um valor relativo. Para este 28 de Agosto estão previstas concentrações de protesto em muitas cidades. Em Portugal será em Lisboa, no Largo de Camões, pelas 18 Horas. Se ainda não o fez pode assinar aqui a petição.

                    Atualidade, Democracia

                    A morte de Peter F.

                    Peter F

                    Completam-se hoje 48 anos sobre o assassinato de Peter Fechter, o primeiro cidadão de Berlim-Leste que tentou passar o Muro para o lado ocidental e foi impedido de o fazer pelo «argumento» das balas. Lembram-se aqui as circunstâncias e os factos.

                    Um estado de «alerta reforçado» foi instituído entre as tropas fronteiriças, em 13 e 14 de Agosto de 1962. No próprio dia 13, houve varias reuniões políticas em Berlim Ocidental, acompanhadas de ruidosos e por vezes violentos protestos de grupos, fundamentalmente constituídos por jovens, de cerca de 1500 «desordeiros» (como os alemães de leste sempre se referiam aos manifestantes ocidentais). A polícia de Berlim Ocidental recebeu ordens para não deixar esses grupos aproximarem-se a mais de uns 20 metros da fronteira. E nenhuma das manifestações se descontrolou verdadeiramente.

                    A verdadeira crise viria a surgir quatro dias mais tarde, a 17 de Agosto.

                    Peter Fechter, de 18 anos de idade, pertencia a um círculo de adolescentes rebeldes do Leste que tinham decidido formar um grande grupo de fuga para o Ocidente. Mas, previsivelmente, à medida que o dia combinado se foi aproximando quase todos perderam a coragem e desistiram, ficando apenas Fechter e um amigo.

                    Tendo conseguido iludir a vigilância dos guardas que patrulhavam a zona restrita por detrás da fronteira do sector, os dois jovens acabaram por se esconder, ao início da tarde de 17 de Agosto, num edifício abandonado junto ao Muro, o qual era agora uma barreira ou um conjunto de barreiras bastante mais temíveis do que haviam sido um ano antes. Do dito edifício avistavam o Checkpoint Charlie, o famoso posto fronteiriço norte-americano.

                    Reunindo toda a sua coragem, lá acabaram por deixar o abrigo e iniciar a muitíssimo arriscada corrida. Quando ultrapassaram a primeira barreira de arame farpado no lado leste, indo o amigo a frente e Fechter uns dois ou três metros mais atrás, os guardas fronteiriços abriram fogo com as suas armas automáticas, a uma distância de cerca de 50 metros. Eles continuaram a correr. O amigo chegou ao muro de dois metros e meio que marcava a fronteira com o sector norte-americano e conseguiu trepar e saltar para o outro lado, com balas a baterem no cimento, a poucos centímetros do seu corpo. Chegou, assim, a Berlim Ocidental, apenas com alguns ferimentos superficiais.

                    Mas Peter Fechter não teve tanta sorte.

                    Enquanto tentava seguir o amigo, subindo a ultima barreira, foi atingido numa perna e deixou-se cair para a terra de ninguém, onde ficou, a gemer e a pedir ajuda, a princípio em altos gritos e depois numa voz cada vez mais fraca e desesperada.

                    A bala tinha-lhe rasgado uma artéria da perna. Uma perturbadora fotografia mostra o jovem caído, meio morto, com os seus jeans apertados e a franja à moda da época ainda intacta, imóvel e com o sangue e a vida a esvaírem-se-lhe para o chão.

                    Imediatamente se juntou uma multidão furiosa de berlinenses ocidentais. E, entretanto, ninguém do Leste nem do Ocidente acudia ao fugitivo ferido. Os alemães de leste diriam mais tarde que, com as mortes dos soldados Göring e Huhn ainda frescas na memória receavam ser alvejados por gente mais exaltada do lado ocidental Ao mesmo tempo que a policia ocidental tinha ordens rigorosas para não entrar em solo da Alemanha de Leste.

                    Os soldados norteamericanos do Checkpoint Charlie também não fizeram nada. Disse-se até que um deles encolheu os ombros disse: «Não é nada connosco». Esse suposto comentário seria imensamente citado e estaria na origem de um antiamericanismo crescente em Berlim Ocidental e na Alemanha Ocidental.

                    Peter Fechter estava inconsciente e talvez até já estivesse morto quando um oficial superior da Alemanha de Leste chegou e incentivou os guardas a entrarem em acção e a levarem o jovem em braços do local. Foi feita uma tentativa gorada para ocultar a operação dos observadores ocidentais, através de uma cortina de fumo. Uma outra fotografia, tirada a partir do lado ocidental, mostra um soldado da Alemanha de Leste que fazia parte do pequeno cortejo furtivo a olhar para a lente da máquina fotográfica ocidental, revelando a sua face uma estranha mistura de medo, vergonha e desafio. Peter Fechter foi declarado morto à chegada ao hospital da polícia, alguns minutos mais tarde. Passara-se cerca de uma hora desde que tinha sido atingido. O comandante da patrulha e dois dos seus homens receberam um bónus pelo feito.

                    in Frederick Taylor. O Muro de Berlim. 13 de Agosto de 1961 – 9 de Novembro de 1989. Lisboa: Tinta-da-China (2007). Trad. de Francisco Mano. 582 págs.

                      Democracia, História, Memória

                      «Intelectuais moderados» e almofadas coloridas

                      almofadas

                      Islão. Passado, presente e futuro, de Hans Küng, é um livro magnífico. Mas deixa no leitor uma certa sensação de ambivalência. O teólogo mal querido da Cúria Romana fala da forma como, no mundo ocidental, após o fim da Guerra Fria se procurou por vezes trocar o comunismo pelo islamismo como representação do mal. Neste âmbito, o desenvolvimento de processos de compreensão do Islão e de laços de entendimento deste com o cristianismo e com o judaísmo parece-lhe imprescindível para evitar um anunciado «choque de civilizações». Produz por isso uma síntese de dimensões históricas e sistemáticas que oferece uma perspectiva ampla e multidimensional do Islão, estimulando uma resposta perante o rastilho de incompreensão e violência que tem vindo a ser ateado. Fá-lo com sabedoria, em nome de um efectivo diálogo inter-religioso que defende desde há meio século. O seu esforço de aproximação acaba, no entanto, por cair numa armadilha, ao alimentar a quimera, comum entre muitos ocidentais, que se traduz em ver nos «intelectuais moderados» do Islão a chave para um compromisso. Na realidade, testemunhos constantes têm revelado a enorme debilidade do lugar desse tipo de pessoas no interior do universo islâmico.

                      Um excelente contributo para o esclarecimento deste enredo é-nos oferecido no número de Agosto da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. O artigo «Os intelectuais árabes, entre Estados e fundamentalismo», da autoria de Hicham Ben Abdallah El Alaoui, incorpora um notável rastreio da situação e das expectativas de muitos dos intelectuais árabes na sua relação com o mundo actual e com a procura de um futuro mais justo e mais democrático para os Estados autoritários que têm o Islão como religião oficial. Ben Abdallah anota um conjunto de circunstâncias e de perspectivas para as quais vale a pena olhar.

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                        Atualidade, Olhares, Opinião

                        Quixotes

                        Quixote, Welles

                        Para Saul Bellow existiam dois tipos de pessoas: os beers e os becomers. Numa tradução razoavelmente livre, «os que são» e «os que hão-de ser». Os primeiros esforçam-se por não mudar, chega-lhes a vida que têm, confiam num destino previsível, num lugar certo e seguro para viver de forma habitual. Os outros não se conformam com o mundo tal qual ele é, preferindo a incerteza, o nomadismo – vivencial, não necessariamente geográfico – e, de vez em quando, uma certa dose de aventura. O nosso tempo é francamente dominado pelos cautelosos beers, enquanto os inconstantes becomers são empurrados para as margens, confinados a um trajecto que passa ao lado de um padrão de prestígio que deliberadamente ignoram. Claro que estes jamais compuseram maiorias, pois um mundo dirigido por becomers seria, na realidade, um mundo alucinante.

                        Em certas épocas, em algumas circunstâncias, em momentos precisos, o seu papel foi no entanto apreciado e até citado como exemplo. Sem a intervenção que protagonizaram, «os que são» ter-se-iam encarregado de coactar a criação e a iniciativa, padronizando o código genético de gerações de autómatos. Os iluministas, os românticos, os modernistas e os indisciplinados dos anos cinquenta e sessenta do século vinte procuraram contrariá-los. Durante algum tempo ergueram como dominante o modelo dos que perseguem uma vida feita de demandas, de equívocos e de interrogações. Uma vida de Quixotes, como a do herói anti-heróico para quem a presença no mundo se fundava na busca desse outro, viageiro e inconstante, que muitos de nós queremos ser. Na ignorância desses beers que, não por acaso, fazem do quixotismo uma opção depreciada, uma experiência na fronteira do inútil e do patético. Preferem o sabor do realismo e um tempo regulado, sem audácias ou perigos.

                          Atualidade, Olhares

                          As mãos da opressão

                          [dailymotion]http://www.dailymotion.com/video/xa46w6_eut-elle-ete-criminelle-even-if-she_creation[/dailymotion]

                          Sabemos alguma coisa sobre como podem as vítimas de um dia converter-se nos algozes do dia seguinte. Mas sabemos pouco, muito pouco, sobre como as mãos da opressão se podem transformar, num instante, ou em menos de um instante, nas das vítimas de uma outra opressão. Nada é fácil e tudo é complexo, como toda a gente sabe. Bem, quase toda.

                          Um obrigado à IC pela partilha. O título do post cita uma velha canção de LF.

                            Fotografia, História, Olhares

                            Pãozinho sem sal

                            pão

                            Procurando uma vez mais diferençar-se de Marrocos – desde a pré-época das «matrículas europeias» dos automóveis que nos deu para isto –, Portugal é a partir de hoje «o primeiro país do mundo ocidental a ter uma lei que impõe limites ao teor de sal no pão». De acordo com um diploma aprovado na Assembleia da República com os votos favoráveis de todas as bancadas (à excepção de votos contra do CDS-PP, um do PSD e uma abstenção), produzir e vender pão com mais de 14 gramas de sal por quilo passa a ser punido com coimas até cinco mil euros, se o prevaricador for uma empresa, ou 3.500, se for «pessoa singular». De fora ficam apenas os pães com «nomes protegidos», como a broa de Avintes ou o pão de Favaios. A lei é de tal forma precursora que, como disse ao Público o Prof. Jorge Polónia, da Faculdade de Medicina do Porto, só agora «os norte-americanos estão a debater a possibilidade de introduzir limites do teor de sal por via legislativa». «Estamos a servir de exemplo», orgulha-se também Luís Martins, cardiologista e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Hipertensão.

                            Nada tenho contra o trabalho mais do que louvável que trata de prevenir as doenças cardiovasculares e o cancro do estômago num país onde se abusa tantas vezes do sal. Mas um país com uma identidade gastronómica, perdoe-se o jargão, que passa justamente pelo uso de um certo tipo de temperos em quantidades bem medidas. Pão com sal não é o mesmo que pãozinho sem sal, como lembra a cultura popular. Tal como o pão da nossa infância não é já esse produto insosso e plástico, moldado na espessura e contido nos sais, que se vende por aí. Como muamba de galinha não é muamba de galinha sem uma boa dose de jindungo, abóbora, cebola e alho. Se, no estado indiano do Rajastão, fosse proibido o abuso culinário da noz-moscada e do açafrão, substituídos por um qualquer «aroma», o crime social não seria maior.

                            Uma vez mais, os fundamentalistas dos corpos normalizados, da saúde a todo o custo, atacam com a proibição, um expediente fácil para substituir as campanhas sistemáticas e imaginativas de prevenção. Uma medida antidemocrática que impede o cidadão de optar, de livre vontade, entre o tipo de alimentação e de condimento que quer ou não comer (ingerir, dirão «eles»), que deve ou não meter da mão para a boca. Assumindo, ao mesmo tempo, a responsabilidade da escolha. Eu, por exemplo, convivo hoje com um problema gástrico derivado da leitura compulsiva, associada a um uso incontido, dessa obra-prima da nossa literatura que é a Cozinha Tradicional Portuguesa. E não é por isso que deixo de assumir as minhas responsabilidades nos excessos, ilibando de qualquer culpa a Dona Maria de Lurdes Modesto. De livre vontade gozei o que gozei, para o mal e para o bem, com o grande «prazer da mesa» lusitana que esta gente moralista, reguladora e intrusa pretende que esqueçamos.

                              Atualidade, Olhares, Opinião

                              This is what dreams are truly made of

                              Bebé

                              No Verão os sonhos acontecem. No mundo do futebol em particular. Djelmar transferiu-se para o Deportivo de Villanueva del Fresno e afirmou «viver um sonho». Britinho assinou por dois anos pelo F.C. de Mogofores e declarou à Trombeta das Beiras ser esse o seu «sonho de menino». Kadu passou do Libertadores do Ceará para o Recreativo de Mocoró e afirmou à torcida mocoroense ser a mudança um sonho feito verdade. Mas nada de comparável ao que aconteceu com Tiago Manuel Dias Correia, Bebé, o rapaz nascido no Cacém que ainda há um ano jogava futebol de rua e agora, praticamente sem experiência de futebol profissional, foi vendido pelo Guimarães ao Manchester United por 10 milhões de euros. Sem formação que não a obtida em ruelas empedradas, pracetas de subúrbio e campos carecas. Sem longos anos a dar cabo dos olhos com livros ilustrados e monitores magalhânicos para «adquirir competências». Presumivelmente sem saber inglês técnico. Claro que Bebé nos diz, deslumbrado, ser «um sonho» poder jogar de vermelho no relvado de Old Trafford. Quem somos nós para o fazer cair na realidade?

                                Atualidade, Devaneios, Etc.

                                Recordando Tony Judt

                                Tony Judt

                                Afectado desde 2008 pelo mal de Gehrig, uma doença neurodegenerativa incurável que enfrentou com a maior coragem, Tony Judt morreu hoje aos 62 anos. Foi um dos grandes historiadores da contemporaneidade. É, e permanecerá, um dos meus favoritos, cuja leitura tenho recomendado repetidamente em aulas e intervenções como ferramenta de conhecimento e exemplo do modo como a interpretação do passado nos pode ajudar a armar a cidadania. Se tivesse de o associar forçosamente a um campo do saber, classificá-lo-ia como historiador das ideias e dos intelectuais, habitante desse território da História, hoje relativamente pouco povoado mas essencial, que estuda de forma sistemática a expressão, a preservação e a mudança dos modos de representar o mundo no domínio do pensamento individual e das convicções partilhadas.

                                Em Portugal foram traduzidos dois livros de Judt, ambos por iniciativa das Edições 70: Pós-Guerra. História da Europa desde 1945 (Postwar. A History of Europe Since 1945, de 2005) e O Século XX Esquecido. Lugares e Memórias (Reappraisals. Reflections on the Forgotten Twentieth Century, de 2008). Se o primeiro é um relato exaustivo e monumental das transformações operadas no Velho Continente, e na sua relação com o resto do mundo, desde o final da Segunda Guerra Mundial até à actualidade, o segundo integra uma colectânea de escritos – inicialmente editados em publicações como a New York Review of Books – que projecta um esforço pessoal de regresso a formas de pensamento e de activismo social que têm sido esquecidas, desarmando o presente para um debate público substantivo e empurrando para o esquecimento temas tão centrais no trajecto humano como os desafios do mal, as sequelas da Guerra Fria ou a memória do marxismo. Estão por traduzir – e aqui fica a sugestão – outros três livros essenciais para compreender a intervenção do historiador inglês: Past Imperfect: French Intellectuals, 1944-1956 (1992), The Burden of Responsability. Blum, Camus, Aron and the French Twentieth Century (1998), e Ill Fares the Land, de 2010, este, já na impossibilidade de escrever, ditado por Judt, e que funciona como uma espécie de testamento político. Construído, como sempre, sob a perspectiva de quem observa o mundo como um continuum em perpétuo movimento, no qual passado, presente e futuro participam de um mesmo corpo.

                                Em O Século XX Esquecido, Judt escreveu: «o que o passado pode realmente ajudar-nos a compreender é a complexidade das perguntas». Uma sugestão que nos ajudará a retirar a História dessa teia de pseudo-certezas que apenas tem contribuído para lhe diminuir o interesse público, transformando-a tantas vezes nesse território rançoso no qual repousa um passado que serve apenas para contemplar ou para comemorar. História viva, como Judt nos ajudou a perceber, é obrigatoriamente, e sempre, questionamento a partir do presente. Num movimento de vaivém que é, justamente, aquele que a devolve à vida.

                                Ler aqui o obituário do New York Times

                                  História, Memória, Olhares

                                  Indiferença

                                  mãos cubanas

                                  Há três dias parei para beber um café e desentorpecer as pernas numa estação de serviço da A2. No restaurante, um pouco acima de um cartaz que anunciava ao preço de 9,55 Euros um prato de macarrão com pedaços de bacon provavelmente atingidos por uma granada de fragmentação, um enorme monitor de LCD espalhava a imagem e a voz de Raul Castro. De farda completa e boné militar, dirigia-se ao cordato parlamento instalado em Havana para anunciar que o seu governo jamais perdoará aos «inimigos da pátria». Assim designa o regime cubano todos aqueles que perturbem a «ordem revolucionária», sejam eles carteiristas reincidentes ou vendedores ocasionais de doces caseiros, blogueiros autónomos ou gays que digam que o são, intelectuais que defendam a liberdade de expressão ou gusanos com dentes de ouro e simpatizantes dos republicanos. Todos iguais, todos «bandidos» que instigam à desordem. Com a voz mais ameaçadora que consegue emitir, o Castro mais novo mostra como se governa em regimes de partido único: ameaçando as pessoas comuns com a voz mais ameaçadora que se consegue emitir, usando os mecanismos da propaganda sem concorrência, mostrando que não pode haver lugar para as razões de quem pensa de forma diferente da única «justa». Mas ninguém levantou os olhos para o ouvir Castro, ali na estação de serviço. Um grupo de turistas chineses ria de alguma coisa. Uma família portuguesa engolia sandes de mortadela enquanto conversava aos gritos. Duas raparigas passavam de mão dada e com headphones nos ouvidos. No aquário, os peixes continuaram em silêncio. Eu bebi o meu café e segui viagem, a pensar em como em Cuba até a indiferença deve doer.

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