Toda a ficção é memória. E o contrário é também verdadeiro, como se sabe. Mas alguma ficção contém mais memória do que outra. É este o caso de Tudo o que eu tenho trago comigo (Atemschaukel no original), de Herta Müller. O romance, publicado em 2009 e agora traduzido, que assoma como relato diferido das perseguições suportadas pela população romena de origem alemã logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Culpada toda ela, fosse qual fosse a idade, profissão ou atitude dos seus, apenas de o ser. Muitos foram sumariamente executados, alguns, poucos, conseguiram escapar, mas quase todos os que tinham entre 17 e 45 anos foram deportados para o Gulag, onde os que conseguiram sobreviver às privações, às cadências e aos castigos passaram anos. Müller conta aqui a história de Leo Auberg, um jovem de 17 anos, natural de Siebenbürg, na Transilvânia, que foi enviado para o campo de trabalho de Nowo-Gorlowka, na Ucrânia. A personagem foi inventada e os atalhos da sua vida também, mas mesmo uma leitura desatenta mostrará sem dificuldade que o romance não poderia ter sido escrito sem fontes testemunhais muito próximas do trabalho de criação. Elas existiram, de facto: Oskar Pastior, um poeta judeu-alemão, antigo prisioneiro, com quem Hertha de início contava partilhar a autoria do livro – tal não aconteceu apenas porque Pastior morreu em 2006 –, e diversos sobreviventes, entre eles a sua própria mãe. Os dois fragmentos que se transcrevem, ambos sobre o trabalho terrível, diário, obsidente, da fome, comprovam a marca indispensável de proximidade entre depoimento e criação neste caso de Lager-Buch, «livro de campo de concentração». Escusado será dizer que vivamente recomendado.
A primeira decisão do dia era: Tenho suficiente firmeza hoje ao pequeno-almoço, para não comer toda a ração com a sopa de ervas? Consigo, no meio da fome, guardar um pedacinho para comer à noite? Almoço não havia, estávamos a trabalhar e não havia nada para decidir. À noitinha, depois do trabalho, se tínha mos mantido a firmeza ao pequeno-almoço, vinha a segunda decisão: Tenho suficiente firmeza para meter a mão debaixo da almofada e ver se o pão que poupei está lá? Consigo esperar até passar a chamada e comê-lo só na cantina? Poderia ainda demorar duas horas. Se a chamada não terminasse logo, mais tempo ainda.
Se não me tinha mantido firme de manhã, à noite não tinha nenhum resto de pão, nem sequer uma decisão para tomar. Enchia a colher só pela metade, sorvia profundamente. Tinha aprendido a comer devagar, a engolir saliva depois de cada colher de sopa. O anjo da fome dizia: A saliva prolonga a sopa, e ir dormir cedo encurta a fome.
[…]
O meu companheiro de cave Albert Gion dissera a caminho de casa, depois do turno da noite: Agora que está quente, quando não se tem nada para comer, pode-se pelo menos aquecer a fome ao sol. Eu não tinha nada para comer e fui para o pátio do campo aquecer ao sol a minha fome. A erva ainda estava castanha, pisada e ardida do regelo. O sol de Março tinha as franjas pálidas. O céu era de água ondulada por cima da aldeia dos russos e o sol deixava-se levar impelido pela ondulação. A mim impelia-me o anjo da fome na direcção do lixo por trás da cantina. Haveria ali porventura cascas de batata, se ninguém ainda lá esteve antes de mim. A maioria ainda estava a trabalhar. Quando vi a Fenja à conversa com a Bea Zakel perto da cantina, tirei as mãos dos bolsos e abrandei para velocidade de passeio. Não podia ir agora ao lixo. A Fenja vestia desta vez o casaco de croché lilás e eu lembrei-me do meu lenço de seda cor de vinho. Depois do fiasco com as polainas, não queria voltar ao bazar. Quem era tão boa a falar como a Bea Zakel também podia ser boa a negociar o meu cachecol por sal e açúcar. A Fenja foi atormentada a coxear para a cantina, a tratar do seu pão.
Herta Müller, Tudo o que eu tenho trago comigo, Dom Quixote. Trad. de Aires Graça. 296 págs.