A lição

cadernos

O desaparecimento prematuro de Tony Judt suscitou um sem número de evocações. Coincidência invulgar para um historiador, num tempo em que a revisitação crítica do passado tem vindo a ser colocada na prateleira das irrelevâncias. Circunstâncias várias motivaram esta atenção. Desde logo o facto da doença que o vitimou ter afectado poderosamente a capacidade de comunicação de alguém cuja actividade se centrava justamente na difusão do saber. O artigo «Noite», publicado na New York Review of Books quando as sequelas do mal seguiam já o seu irreversível caminho, permanecerá como testemunho lúcido e comovedor de um encontro pessoal com o silêncio. Chamou-lhe ele aí «um encarceramento progressivo e sem fiança». Um segundo motivo dessa intensa atenção prendeu-se com a sua actividade opinativa associada aos dilemas do nosso tempo. Judeu de esquerda desde a juventude, movimentou-se sempre, nesta dupla qualidade, num ambiente pouco afeito a consensos. Perto da morte lembrou-se de como crescera a ouvir os parentes e as visitas lá de casa a debaterem o marxismo, o sionismo e o socialismo: «falar parecia-me até o objectivo da existência adulta». Um terceiro motivo do interesse que instigou adveio do carácter polémico, frequentes vezes a contracorrente, que derivava da sua reiterada heterodoxia. A posição, partilhada aliás com Edward Said, sobre a criação de um Estado único israelo-palestiniano, afastou-o definitivamente de sectores que até aí o tinham acompanhado. Nos últimos tempos, a projecção utópica de um retorno à pureza original da social-democracia, divulgada em Ill Fares the Land: A Treatise On Our Present Discontents (2010), ampliou esse duplo efeito de atenção e recusa.

Esse compromisso com uma atitude participativa estendeu-se também ao trabalho como historiador. Lendo os seus livros aproximamo-nos do grau de interesse e de paixão que é possível associar à História sem que por isso, ou para isso, tenhamos de perder o sentido do rigor e abandonar os factos. Por outro lado, Judt ocupou-se da vida e da cronologia das ideias e do papel dos intelectuais, estudando a composição, a expressão e a mudança dos modos de representar o mundo no domínio do pensamento individual e das convicções partilhadas. Esta escolha, associada ao interesse por um tempo recente, próximo, com actores e figurantes ainda activos, não podia deixar de reforçar a dimensão dinâmica, e inevitavelmente polémica, da sua actividade como historiador profissional e académico reputado.

Em Portugal foram publicados dois livros seus(*), ambos pelas Edições 70: Pós-Guerra. História da Europa desde 1945 (Postwar. A History of Europe Since 1945, de 2005) e O Século XX Esquecido. Lugares e Memórias (Reappraisals. Reflections on the Forgotten Twentieth Century, de 2008). Se o primeiro incorpora um relato exaustivo e monumental das transformações operadas no Velho Continente entre o termo da Segunda Guerra Mundial e a actualidade, o segundo colige escritos onde projectou um regresso a formas exemplares de pensamento e de activismo esquecidas ou sobrevalorizadas, preparando o presente para um debate substantivo sobre temas tão centrais como os desafios colocados aos intelectuais pela propagação do mal totalitário, as consequências da Guerra Fria ou a memória dos marxismos. Mas permanecem por traduzir outros três, todos eles fundamentais para se compreender a importância do historiador: Marxism and the French Left: Studies on Labour and Politics in France 1830-1982 (1990), Past Imperfect: French Intellectuals, 1944-1956 (1992), e The Burden of Responsability. Blum, Camus, Aron and the French Twentieth Century (1998), escritos sob a perspectiva de quem já então observava o mundo como um continuum no qual passado, presente e futuro participam de um mesmo dinamismo. O seu trabalho ocupou-se aí da esquerda socialista francesa dos séculos XIX e XX, seguindo um caminho que tornou mais complexos e mais humanos os seus actores, redimindo-os também de algumas das incompreensões que defrontaram. Em O Século XX Esquecido, escreveu: «o que o passado pode realmente ajudar-nos a compreender é a complexidade das perguntas». Uma sugestão que nos pode servir para retirar a História da teia de pseudo-certezas que lhe diminuem o dinamismo. História viva, como ajudou a perceber, é questionamento a partir de um agora, num movimento de vaivém que a devolve constantemente à vida. Esta foi a sua lição.

(*) Saiu entretanto um terceiro: a tradução de Ill Fares the Land, sob o título Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, igualmente nas Edições 70.

[Revisitação de um texto publicado na revista LER de Outubro de 2010.]

    História, Memória.