Arquivos Mensais: Outubro 2010

O fim do eterno descanso

Cemitério

Segundo uma notícia que saiu hoje no Público, em breve as agências funerárias poderão gerir «actividades conexas» àquelas que tradicionalmente exerciam, tais como a «gestão, exploração e conservação dos cemitérios». Uma actividade que até agora era entendida como um serviço eminentemente público, dirigida em regra pela administração local, passa a ter «permissão de gestão e de exploração privada». Sabendo nós que – tal como acontece com as casas de pasto, os bares de alterne e as farmácias – este é um ramo no qual não existe quebra de procura, e onde a política de preços é bastante livre e nada meiga, é fácil calcular o conjunto de interesses que a sua entrega à iniciativa privada irá despertar. Um passo mais no recuo do Estado social nas suas competências, mas agora numa original dimensão post-mortem. Podemos desde já antever planos de crédito que unirão gerações inteiras de profissionais da morte e de simples cidadãos endividados até à quinta geração de descendentes. Sempre com a negra possibilidade do despejo a pairar-lhes sobre a sepultura. Sem descanso até à eternidade.

    Atualidade, Olhares

    Entretanto na China

    Na mina de carvão de Jin Hua Gong

    O drama dos 33 trabalhadores da mina de ouro e cobre de San José, no deserto de Atacama, não pode esgotar-se no seu final feliz. Porque se encontra ligado às sempre difíceis condições de trabalho de uma das mais antigas ocupações operárias. Uma profissão cravada de enormes riscos, tremendamente insalubre, com duras cadências e geralmente muito mal paga, mas por isso mesmo marcada por um companheirismo profundo entre a generalidade dos que nela passam a maior parte da vida e dela fazem o seu ganha-pão. Aliás, o movimento operário sempre teve entre os mineiros uma das suas alas mais combativas, radicais e solidárias e não foi por acaso que uma das mais tocantes imagens que ontem passaram em algumas televisões foi a de dois mineiros australianos, homens maduros que já viveram um drama análogo ao dos chilenos e, durante um directo, foram incapazes de conter os soluços de comoção diante das experiências vividas pelos seus camaradas do outro lado do Pacífico.

    Vale a pena, por isso, lembrar neste momento de alegria a situação catastrófica dos mineiros chineses, com índices de sinistralidade e de mortalidade – associados a condições de trabalho e salariais miseráveis – verdadeiramente inconcebíveis. Estudos recentes apontam para cerca de 1.000 (mil, não é engano) mortos por ano, correspondendo a 80% do número de fatalidades ocorridas em todo o mundo quando a produção mineira da China é apenas de 35% da global. Em 2006, e de acordo com os números oficiais, o número de mortos foi mesmo de 7.500. Um acidente praticamente em cada 7 dias, a maior parte sem referência nos meios de comunicação e nenhum deles com um décimo da atenção mediática dada ao acidente de San José. Será de recordar estes dados aos responsáveis do partido político português que calam os crimes diários praticados na China contra os trabalhadores mas se preocupam tanto com a atribuição do Nobel da Paz ao activista dos direitos humanos Liu Xiaobo. É que uma sua posição de denúncia, a ser feita na devida altura e sem rodeios, seria por certo um gesto internacionalista capaz de «contribuir para a afirmação dos valores da paz, da solidariedade e da amizade entre os povos». Passe a expressão que de há muito trataram de tornar inócua.

      Atualidade, Democracia, Olhares

      Punhos de aço

      querido camarada

      Outros companheiros desta guerra de trincheiras por uma esquerda democrática e de causas coerente com a defesa essencial dos direitos dos trabalhadores e a das liberdades individuais, já falaram bastante nos seus blogues dos silêncios e das cumplicidades da direcção do PCP diante daquilo que está a acontecer, aos olhos do mundo inteiro, nos territórios controlados «com punhos de aço» – como tanto gostam de dizer os «queridos camaradas» dirigentes dos «partidos-irmãos» –  pelas ditaduras chinesa e norte-coreana. Para memória futura, aqui fica mais um modestíssimo contributo da referida agremiação para uma espécie de folhetim universal da infâmia.

        Apontamentos, Atualidade

        O outro Vladimir

        Maïakovski

        Na minha alma não tenho um só cabelo branco,
        nem a doçura dos velhos.
        Diante do meu verbo vigoroso, o mundo treme
        aqui vou eu – soberbo
        com os meus vinte e dois anos.

        | do prólogo de A Nuvem de Calças (1915)

        Acaba de me chegar La Vie en Jeu, a primeira tradução do sueco da biografia do poeta, revolucionário e provocador Vladimir Maïakovski (1893-1930). O autor, Bengt Janfeldt, desenha um retrato revisto e bastante aumentado para o qual se serviu dos testemunhos inéditos de pessoas muito próximas, de arquivos privados e principalmente de documentos recentemente disponibilizados que foram propriedade exclusiva dos serviços secretos soviéticos e britânicos. Seiscentas páginas de um trajecto voraz e rigorosamente vigiado. Uma edição da Albin Michel que me servirá de companhia durante os próximos dias. Darei notícias.

          História, Poesia

          Seinfeld e o Facebook

          Seinfeld

          No mundo antigo, organizado à volta das relações de parentesco e dos laços dinásticos, as afinidades electivas, as amizades, eram excepcionais, aparecendo muitas vezes, justamente por isso, como subversivas. O cristianismo tentará eclipsar este tipo de ligação ao colocar como modelo a relação individual com Deus. Por isso também, as comunidades monásticas afastaram a amizade das regras do seu quotidiano: as ligações privadas representavam uma ameaça para a coesão do grupo e para a fé. Os humanistas, porém, retomaram-nas, construindo a primeira rede pan-europeia assente na fidelidade pessoal e numa aproximação de valores e de sensibilidades, que mantinham recorrendo principalmente à correspondência privada. Já a Revolução Francesa emancipou o valor da aproximação pessoal ao colocar a fraternidade como uma das suas divisas nucleares. A cultura da amizade de grupo chegaria décadas mais tarde, associada em parte à extensão do sistema escolar e ao serviço militar obrigatório e universal, criadores de espaços e de tempos de aproximação. Terá atingido o seu zénite nos anos sessenta, permanecendo como um vestígio ainda atraente por volta de 1989, quando arranca a série televisiva Seinfeld. A coesão do grupo dependia aí, em primeiro lugar, das cumplicidades assentes no relacionamento diário, directo e pessoal, entre aqueles que o compunham.

          Não sei se existe ou não uma linha de continuidade, nesta narrativa flash da amizade, com o universo dos «amigos» que todos os dias fazemos entre os mais de 520 milhões de habitantes – a larga maioria composta por mulheres, vá lá o Diabo explicar o porquê – que povoam o mundo-rede do Facebook. Parece que a média por pessoa é de 130 afectuosos companheiros e amorosas parceiras, o que só por si nos remete para esse conceito de «salto qualitativo» utilizado nos catecismos do materialismo dialéctico para significar uma alteração efectiva do estado das coisas. Significará esta multiplicação de «amigos» o futuro da amizade? Por mim, admito que a maioria dos quase 500 que tenho me aparece como um vulto. Simpático muitas vezes, sobretudo quando salta da penumbra e lhe oiço a voz, mas um vulto. Isto se excluir a quantidade de voyeurs e exibicionistas que passa no horizonte, muitos deles mais empenhados em multiplicar audiências do que em agregar empatias. Mas há mesmo, por ali, pessoas que não conhecemos em pele e osso e de quem, até prova em contrário determinada pelo feitio, o penteado ou o mau hálito, gostamos ou acreditamos que gostamos. Com elas, e com algumas das outras, vamos cruzando gostos e cumplicidades, defendendo causas de outro modo perdidas, trocando informações úteis e frases calorosas que só ali nos saem do tinteiro. Será isto «amizade»? Ou apenas, nesta sociedade atomizada, com as referências vindo e partindo em perpétuo movimento, «uma tentativa de encontrar um sentimento de pertença a um colectivo», como escreve a socióloga Stéphane Hugon? Assistimos ali à construção de relações de proximidade que partem do colectivo para o indivíduo e não o contrário? Pode ser esta a chave para entender a mudança? Se for assim, não será mau de todo. Basta adaptarmo-nos. E ir aproveitando os restos do mundo arcaico feito de afectos conquistados com a epiderme. Afinal Jerry Seinfeld, George Costanza, Elaine Benes e Cosmo Kramer não se conheceram no Facebook.

          [Vem um bom dossier sobre este tema no número de Outubro da revista francesa Books.]

            Apontamentos, Cibercultura, Olhares

            Mais vento de Leste

            Liu Xiaobo

            São escassas mas vão chegando. Outra boa notícia para a luta pela defesa dos direitos humanos na China: depois da concessão do Prémio Sakharov de 2008 a Hu Jia, foi agora a vez de o Prémio Nobel da Paz de 2010 ser atribuído ao activista e dissidente Liu Xiaobo. Liu, um dos principais dirigentes da luta estudantil que em 1989 conduziu aos acontecimentos de Tienanmen, encontra-se a cumprir uma pena de onze anos de prisão por ter sido um dos autores da Carta 08, um manifesto a favor da liberdade de expressão e de eleições multipartidárias. Para os impenitentes autocratas de Pequim a entrega do prémio a Xiaobo é «uma obscenidade». Venham mais.

              Atualidade, Democracia

              Companheiro Mario

              Mario Vargas Llosa

              Comecei a ler Mario Vargas Llosa sensivelmente pela mesma época em que comecei a ler Gabriel Garcia Márquez. No entanto, os nossos primeiros encontros não foram fáceis. A Cidade e os Cães e a Conversa na Catedral, com os quais me estreei, foram de uma leitura bem mais sofrida do que a do agora ultra-canónico Cem Anos de Solidão, de Márquez. O primeiro dos romances, para ser muito sincero, por causa de um homoerotismo latente que impressionava qualquer rapaz provinciano cheio de preconceitos como eu era, o segundo pelo grau de elaboração formal para a qual não estava preparado. Llosa e Márquez eram amigos nessa época e a vida e a ética política foram-nos depois distanciando, mas para mim a separação foi sendo construída, a partir dali, de uma outra forma. Enquanto os livros do peruano continuaram a surpreender-me pela versatilidade, os do colombiano passaram a saber-me sempre mais ou menos ao mesmo. Continuaram lado a lado nas estantes cá de casa – ainda lá estão, estou a vê-los daqui – mas fui-os colocando mentalmente em dois mundos cada vez mais opostos.

              Devo dizer que da actividade política de Llosa como reformista «do centro» nunca me senti propriamente próximo, ainda que na longa noite da América Latina dos ditadores e das ditaduras esses qualificativos tenham adquirido sempre um sentido razoavelmente diverso daquele que, agora como na altura, lhes atribuímos aqui na Europa. Mas os seus ensaios e artigos de opinião desde há muito que o redimiram desses ímpetos liberais que podem sempre provocar, é também o meu caso, um certa alergia a muitos dos seus mais indefectíveis leitores e admiradores. Penso agora, convictamente, que parte substancial da grandeza de Vargas Llosa se encontra igualmente – a par do que vai compondo com a sua caixa de ferramentas de romancista – no constante trabalho no campo da não-ficção, indiciador de uma capacidade notável e permanente para dialogar criticamente com o mundo. Combatendo na vertical, e não poucas vezes com custos pessoais, pela liberdade do indivíduo e da palavra. Contra Pinochet ou Castro, Bush ou Bin Laden.

              A Academia sueca atribuiu-lhe agora o Nobel da Literatura de 2010. Foi dito esta manhã que «pela sua cartografia das estruturas do poder e as suas imagens mordazes sobre a resistência, a revolta e a derrota individual». Entendo a declaração como um elogio associado a um Mario Vargas Llosa integral. Não apenas o grande romancista, mas também o defensor da fala livre e dos direitos humanos. Por isso, e pela primeira vez em bastantes anos, me senti feliz quando soube quem ganhara o prémio. Um prémio político? Espero bem que sim. Não só, mas também.

              [Os 10 melhores links para entender Mario Vargas Llosa segundo El País.]

                Atualidade, Democracia, Olhares

                Petição pelo pluralismo de opinião

                pies
                «Automat. New York», por Berenice Abbott

                Disponível online uma Petição pelo pluralismo de opinião no debate político-económico. Perante o silenciamento de opiniões divergentes e o tom monocórdico, nos órgãos de comunicação social, dos comentários a propósito do PEC III, da sua conjuntura e da sua «inevitabilidade», torna-se imperioso protestar contra uma censura praticada por omissão que apenas aceita, sem direito ao contraditório, pontos de vista distribuídos «entre os que concordam e os que concordam». Leia, assine e divulgue.

                  Atualidade, Opinião

                  Oportunidade perdida

                  A debate

                  Em Dezembro de 2009 deixei aqui um post semi-premonitório (embora já fosse muito fácil «adivinhar» aquilo que viria a acontecer) a propósito do Centenário da República e da grande feira – esse lugar onde tudo se vende e tudo se mostra, da boa fruta à banha-da-cobra – que iria ser montada à sua volta. Destaco um passo daquilo que então escrevi:

                  «Seria (…) um favor à memória da República e dos republicanos, e também uma dádiva à experiência actual da cidadania, que, mais do que endeusar ou diabolizar nomes, destacar ou amaldiçoar decretos, distinguir ou esconjurar determinados momentos, se procurasse compreender o essencial e não apenas o acessório e o inócuo. (…) Só desta forma os ideais republicanos poderão retroceder por instantes à vida, e deixarão de inscrever-se apenas num tempo remoto, fantasmagórico, que apenas interessará verdadeiramente os historiadores e o seu público. Porque não aproveitar para re-discutir o regime, o laicismo, a religião, a família, a escola, o ensino, as tradições, a opinião pública, a intervenção das mulheres, e outros temas que, cem anos depois, permanecem ainda nas nossas expectativas e preocupações?»

                  Sou historiador e cidadão singular, empenhado, em ambas e numa só pele, no destino comum. Interessa-me, portanto, olhar para os dois lados da moeda. Mas se o conhecimento da História da República e do republicanismo saiu globalmente reforçado das manobras do ano – como em tudo, com trabalhos excelentes e medíocres, interessantes e monótonos, inovadores e repetitivos, razoavelmente isentos (por vezes até de mais)  e assumidamente prosélitos (o que não é necessariamente mau) – o debate pela cidadania piorou, uma vez que a oportunidade de comemorar confrontando o presente e projectando futuros praticamente se perdeu. Muitas vezes em favor do cerimonial, do auto-elogio e de intervenções deslocadas do tempo em que vivemos e das falas que partilhamos. E tão precisados estávamos, tão precisados nos mantemos, de um debate profundo, substancial e ousado, que questione tendências e não se limite a ensaiar receitas. Que confronte regime e sistema e não se limite a olhar para eles com um encolher de ombros desiludido, nostálgico e conformista. Teria sido uma boa oportunidade para lançá-lo com algum impacto.

                    Atualidade, História

                    Romance negro

                    roman noir
                    Imagem: El País/Magnum/Peter Marlow

                    A Babelia de ontem transporta consigo uma reportagem («El refugio de los lectores») sobre as transformações do mundo editorial espanhol em tempo de crise. Uma das tendências que se começa a destacar – a par da inevitável quebra nas vendas – é o regresso em força do roman noir. É verdade que este se encontra associado a edições baratas, em paperback, muitas vezes com direitos de autor já caducados e por isso mais acessíveis a editores e a leitores. Mas temo que possa também ser procurado como fonte de inspiração. Que, uma vez mais, a realidade se antecipe à ficção ou que esta lhe sirva de alimento. Que o efeito se propague e avance para oeste, entrando-nos em casa.

                      Atualidade, Olhares

                      Um Islão da esperança

                      Hans Küng

                      Na longa abordagem que faz das «religiões do livro», a reflexão teológica de Hans Küng propõe-nos uma política de moderação que pretende projectar as bases de um efectivo ecumenismo. Este não pode traduzir apenas um processo de abertura e de colaboração inter-religiosa, devendo ir bastante mais longe, até à real aproximação das várias formas de fé e à integração do próprio mundo secular. É esse o objectivo principal prosseguido na trilogia que compôs sobre o judaísmo (1991), o cristianismo (1994) e o islamismo (2004). Küng escreve sempre com uma agenda omnipresente – «não estou primariamente interessado no passado, mas sim no presente» – que determina todo o seu trabalho de pesquisa, interpretação e análise. No volume sobre o Islão, agora traduzido em Portugal, este objectivo surge até reforçado, dada a crescente importância da religião corânica na construção da contemporaneidade. O teólogo refere o modo como no mundo ocidental, logo após o fim da Guerra Fria, se procurou substituir a imagem do comunismo pela do islamismo como representação do inimigo, suscitando equívocos, exacerbando diferenças e justificando por essa via a corrida ao armamento e a criação de uma atmosfera favorável a mais e mais guerras. Neste contexto, o desenvolvimento de processos de compreensão e de laços de entendimento parece-lhe dramaticamente imprescindível para afastar o confronto de culturas, ou o «choque de civilizações», como cenário de um futuro próximo.

                      Procura assim produzir, como nos propõe, «uma síntese de dimensões simultaneamente históricas e sistemáticas», visando obter uma perspectiva multidimensional do Islão em ordem a promover uma nova fase na relação entre civilizações, nações e religiões e uma mais rápida capacidade de resposta perante os rastilhos de incompreensão e violência que por todo o lado têm sido ateados. Fá-lo em mais de 800 páginas que constituem uma espécie de enciclopédia do Islão e das relações entre cristãos e muçulmanos no passado e no presente. Partindo de uma abordagem detalhada da construção histórica da imagem hostil e da imagem ideal da religião de Maomé – a partir de uma experiência anterior, enfatiza Küng, que é comum à das outras grandes religiões monoteístas –, analisa aquela que considera ser a sua imagem real, actual, para, finalmente, lançar um olhar sobre uma imagem da esperança capaz de afastar a hostilidade que com preocupação evoca no início do livro. Pelo meio vai detectando todas as referências e sinais que indiciem a existência de um «Islão crítico», transigente, capaz de renovar o seu próprio universo a partir de dentro e, também ele, de estender a mão às outras religiões. É este o Islão que considera «verdadeiro», contra o outro, «desfigurado, falseado e profanado» tanto pelos seus detractores como por muitos dos seus prosélitos. O paradoxo da obra reside no facto de Küng procurar essa imagem de esperança privilegiando menos a construção da identidade muçulmana, o seu trajecto solitário e intransigente, do que a procura de uma noção de abertura e de respeito pelo outro que lhe não é forçosamente imanente. Mas é também nesta dimensão contraditória, e por isso dialogante, que reside o interesse deste livro entusiasta com o qual se aprende a cada parágrafo.

                      [Hans Küng, Islão. Passado, Presente e Futuro. Edições 70. Trad. de Lino Marques. 832 págs. Revisitação de um texto publicado na revista LER de Setembro de 2010.]

                        Atualidade, História

                        O seu nome era Tony

                        Tony Curtis

                        Talvez faça parte da última geração que construiu o seu amor pelo cinema debaixo dos telhados maternais dos velhos cineteatros de província. Daqueles com palco de cortina, pequenos camarotes, primeiro e segundo balcão, duas plateias e, certas vezes, um «piolho» onde era possível fumar e atirar cascas de amendoim para o chão. Dessa primeira experiência deslumbrada sobra-me a memória de alguns clássicos para o grande público (Cecil B. DeMille e John Ford forever!) e a recordação das paredes beije de foyers decorados com fotografias um tanto descoloridas de astros e de estrelas da Hollywood dos anos 40 e 50. Foi esta a primeira imagem que me ocorreu – lamento, não foi um fotograma de Some Like It Hot (1959), de Billy Wilder – quando soube ontem da morte de Tony Curtis (1925-2010). Um dos rostos omnipresentes nessas galerias íntimas do maravilhamento. Deve ter sido por isso que senti mais uns quantos gramas de passado a caírem no chão com algum estardalhaço.

                          Apontamentos, Cinema, Memória

                          E la nave va

                          E la nave va

                          O PEC III é um pesado drama para a maioria dos portugueses. Por aquilo que tira directa ou indirectamente dos seus bolsos e das suas vidas, mas também pelas perspectivas de futuro que bloqueia. E não, não serão apenas os funcionários públicos a ver o filme a andar para trás, como podem pensar os mais distraídos: seremos quase todos nós, com pouquíssimas excepções. O pior de tudo, porém, é não se vislumbrar uma saída. Podemos dizer que não paga a crise quem a deveria pagar, que se atacou o elo mais fraco, que mais sofrerão as pessoas que não têm como fugir ao que lhes é exigido. Isso é verdade e com toda a certeza que um PS com S tinha o dever de, com audácia e imaginação, levar as coisas para um caminho mais equitativo, mais centrado nos culpados que nas vítimas. Mas quem está no poder, moldado no compromisso, não é já capaz de vislumbrar outras medidas que não as agora impostas. E a saída, para quem procure combater este plano com uma alternativa capaz, não pode ser a da «luta» pela luta, gaguejada num sonoro mantra por essa grande fatia da esquerda que sabe desmantelar e protestar mas não construir.

                          O seu problema é que não consegue gerar uma alternativa. Apesar de ainda precisar de crescer politicamente, o BE tem-se esforçado por denunciar e encontrar soluções, dentro do que é possível integrar no âmbito de uma intervenção essencialmente reivindicativa. Mas é necessário muito mais: é preciso romper, mudar, alterar o paradigma dominante de desenvolvimento e de gestão, e não se vê quem o possa fazer de maneira programática. O PS apenas gere medrosamente a «política do possível», o PCP continua a ser um partido meramente reivindicativo, sem um modelo atraente e mobilizador de sociedade, os «alegristas» só jogam à defesa. O drama é este: não existe uma opção forte capaz de agregar sinergias para descobrir uma saída governativa que não seja a da capitulação perante o universo da especulação financeira. É este o desgraçado, o dramático, ponto a que chegámos. «A luta» possível tem pois, necessariamente, que procurar reduzir os danos mais gravosos sobre a vida dos trabalhadores. Mas precisa acima de tudo, urgentemente, desesperadamente, de se associar a uma alternativa credível e agregadora. Um projecto que traduza uma mudança de prioridades e de políticas. «A luta» e a rua podem até ser um caminho, podem até dar um empurrão, mas jamais serão a solução. É preciso mais: pensar, falar, unir e propor para  mobilizar as pessoas comuns. Uma tarefa que não pode ser para amanhã mas sim para já.

                            Atualidade, Opinião

                            U2? Not me.

                            U2

                            No princípio gostei moderadamente da música dos U2. E ainda oiço bem alguns dos temas mais antigos, saídos dos primeiros álbuns. Boy (1980) e October (1981) são rudes, ingénuos, verdadeiros como a primeira bebedeira. War (1983) já integra a intervenção política como parte da arte do grupo (oiça-se o épico «Sunday, Bloody Sunday»). Por sua vez, The Unforgettable Fire (1984) é um álbum mais elaborado, quase adulto, com a produção decisiva de Brian Eno e Daniel Lanois a sublinhar as melodias e a guitarra de The Edge a moderar o protagonismo de Bono. The Joshua Tree (1987), prolonga-o em parte, sendo o último que ouvi com algum prazer. A partir do disco seguinte, Rattle And Hum (1988), a banda «americaniza» a produção, globalizando-se e tornando-se o «supergrupo dos megaconcertos» que hoje conhecemos (Achtung Baby, de 1991, e blá-blá por aí fora).

                            Como acontece tantas vezes neste terreno movediço da música popular, a fixação numa sonoridade repetida e sem chama tornou-a mais facilmente reconhecível, fazendo-a chegar a um sector de público com menos interesse pelo áspero e pelo autêntico. E com maior vontade de ouvir aquilo que já ouviu e que espera continuar a ouvir até à eternidade. Os U2 são agora um mero produto de mercado, como um Big Mac ou a Lady Gaga, e até a sua «rebeldia» foi completamente incorporada na máquina de fazer dinheiro que promove a imagem industrial de um «grupo de causas» com a mesma facilidade com que num mercado se vendem t-shirts do Che ou medalhinhas com a efígie do papa ou de Lenine.

                            É esta a banda que vai estar em Coimbra nas noites de 2 e 3 de Outubro, em concertos, esgotadíssimos há quase um ano, com bilhetes a 125 euros (entretanto inflacionados para 200 ou mais). Por mim, que moro a dez minutos do local do crime, vou passar ao lado: a música recente dos U2 não me interessa de todo, as versões antigas são tocadas em piloto automático e não sou suficientemente basbaque para me deixar impressionar com a «aranha» e a pirotecnia megalómanas que a magnânima Câmara da cidade ajudou a financiar com a módica quantia de 200.000 euros. Além disso, não me apetece encontrar-me com o Pedro Passos Coelho ou algum clone seu. «É uma coisa que me chateia, pá.»

                              Apontamentos, Música