Já todas as perspectivas concebíveis foram enunciadas a propósito do caso WikiLeaks e dos 250.000 documentos secretos disponibilizados pela organização ao El País, ao Le Monde, à Spiegel, ao Guardian e ao New York Times – curiosamente, o que não tem sido sublinhado, todos eles situados de alguma forma à esquerda do espectro político no panorama editorial dos respectivos países –, que os tratam e vão revelando ao mundo a gonta-gotas, de acordo com critérios e objectivos que só as suas direcções conhecerão. Um dos últimos pontos de vista, e também um dos mais divertidos, é o de Fidel Castro, para quem o episódio «pôs os Estados Unidos de joelhos» mas serve também os interesses de um punhado de meios de comunicação «pró-fascistas» que recorrem a ele «para atacar os países mais revolucionários». Entretanto, as primeiras abordagens foram naturalmente bastante simples e epidérmicas, e admito que um tanto distraidamente partilhei uma delas. Não a que antecipou um certo êxtase em relação à orgia de informação que se anunciava, mas antes aquela que nos primeiros dados avançados não via nada de mais, de particularmente novo ou de excitante. É verdade que senti, e continuo a sentir, alguma desconfiança em relação ao modo demasiado simples como tudo aconteceu e em relação aos interesses das partes envolvidas (incluindo nestas o trajecto e as motivações de Assange), mas admito que talvez tenha reparado mais no fumo do carburador do que nas condições de funcionamento do motor. Regresso pois ao assunto.
A maioria dos artigos de jornal e dos posts surgidos em blogues distribui-se simplisticamente por dois grandes campos. O daqueles que vêm no vivaço trintão australiano um novo Che, talvez menos fisicamente atraente mas não menos bravo, e entendem que tudo deve ser dito a toda a gente. Embora alguns dos que defendem este ponto de vista ressalvem a existência de Estados com governantes gloriosamente antiamericanos onde o controlo da informação possa ser legítimo. E, do outro lado, o campo dos que entendem que os governos têm todo o direito de escolher o que é informação sensível e de a furtar aos olhares públicos, punindo quem se arrogue a dar com a língua nos dentes. Contra ambos, vejo antes o que alguns comentaristas avisados também já viram: uma coisa é o direito ao secretismo, que é uma prerrogativa de todos os detentores de alguma forma de poder e que nas questões de política internacional pode em muitos casos tornar-se inevitável, mas outra é o dever de os órgãos de comunicação livre darem a conhecer aos cidadãos as informações que lhes dizem respeito e às quais têm acesso. Por outras palavras: os diplomatas e os espiões devem ter cuidado na transmissão da informação sensível com a qual trabalham, mas se o não tiverem ninguém terá de fazer o seu trabalho por eles. Salvo, naturalmente, em situações extremas, quando a circulação de informação crucial pode colocar vidas em jogo. Não é este no entanto, visivelmente, o caso da larga maioria dos telegramas já conhecidos.
O problema central, aquele que mais nos deve inquietar, bate justamente nesta tecla. Num artigo do último número da Wired escreve-se que «uma imprensa autenticamente livre, liberta de toda a consideração nacionalista, constitui manifestamente um problema aterrorizador, tanto para os governos eleitos quanto para os tiranos.» Uns e outros, distanciados das sociedades que governam e cada vez mais habituados a mandar por decreto, pouco ou nada atendendo ao valor da opinião pública, dão de barato que a boa governação e a boa diplomacia se fazem nas antecâmaras e nos corredores, não na praça pública, destinada apenas, idealmente, ao circo das grandes consagrações. E por isso tanto os incomoda, como incomoda os seus escribas e porta-vozes, que chegue «à cozinha» uma conversa que deveria ter sido mantida na discrição dos gabinetes. Claro que a WikiLeaks não é sinónimo de transparência, nem o seu rosto mais conhecido é propriamente um mártir da liberdade e da democracia radical, mas o que nos deve inquietar não são os resultados e as ondas de choque das suas iniciativas, para as quais quem tem nas mãos o poder dispõe sempre de boas almofadas. O que preocupa é que exista quem queira silenciá-las. Para que os vulgares cidadãos não se arroguem a meter o nariz onde não são chamados. Para que estes percebam que a liberdade de expressão tem limites, fronteiras determinadas por quem pode fazê-lo que «não devem ser ultrapassadas». E para dar o exemplo.