É bom prevenir o leitor: apesar do aspecto sóbrio da capa e da respeitabilidade do tema, esta não é uma obra de filosofia política. Aquilo que o autor se propõe fazer a partir da sua identidade pessoal complexa – Andrew Sullivan é um inglês católico de ascendência irlandesa, americano por adopção, gay e típico membro da Geração X – consiste antes em descrever a trajectória que fez dele, neste tempo em que todos «vivemos em nichos e comunicamos no meio de ravinas», um conservador mal visto pela maioria dos que adoptam princípios e atitudes inflexíveis e manifestamente de direita. Mas este pode também ser considerado um livro contra a apostasia, no qual os apóstatas, classificados como «fundamentalistas», são os que traíram a ficção de segurança, a noção de resposta ao «colapso da esquerda», a resistência à mudança e a uma certa ideia de perda, sobre a qual Sullivan construiu o seu próprio modelo de conservadorismo.
Sullivan expõe desde o início uma concepção bastante aberta das suas escolhas. Para Michael Oakeshott, o filósofo britânico sobre o qual escreveu uma tese em Harvard, não pode construir-se uma moral pessoal com base num livro ou numa teoria; com ele Sullivan aprendeu que «a nossa moral é como a linguagem que aprendemos e usamos a cada instante», a qual parte de uma base sólida mas deve ser constantemente adaptada à experiência. Será este, no fundo, o fundamento de um «conservadorismo dialogante», associado pelo autor ao ideal de governação proposto nos anos oitenta por Thatcher e Reagan. A valia social desta opção teria, porém, sido usurpada e arruinada na década de 1990 por um «fundamentalismo» de características religiosas. Este apoia-se em factos, não em teorias, excluindo a dúvida em nome da fé, impondo pela força «uma verdade inalterável, precisa e externa no centro da vida de cada pessoa», e exigindo a sua completa obediência. Na América, partiu de algumas margens mas cresceu rapidamente, atingindo a direcção dos republicanos e disseminando metástases por toda a sociedade. A figura e a intervenção de de George W. Bush teriam então emergido, nos planos simbólico e prático, como sinais do recuo de uma ideia de sociedade serena e equilibrada dirigida pela inteligência e pelo bom senso. Um recuo apoiado nos sectores mais retrógrados e intransigentes da sociedade americana, compostos por gente que toma a Bíblia à letra, ignorando dois mil anos de experiência e de progressos no campo da ciência e dos direitos humanos.
Sabendo-se que A Alma Conservadora foi publicado em 2006, antes ainda da rápida ascensão pública de Barak Obama, o panorama apresentado é devastador. Todavia, na segunda parte da obra, Sullivan perde o registo pessimista e retoma a voz combativa – em defesa, por exemplo, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou repudiando a tortura e a pena de morte – que o destacou, em The Daily Dish, como um dos primeiros bloggers a desempenhar um papel proeminente enquanto opinion maker. No final, o leitor reconhecerá o forte desejo, manifestado pelo autor, de depurar a «alma conservadora» dos seus desvios perigosos e infelizes. Uma atitude de proselitismo de um ideal de conservação e nostalgia, ancorado num horizonte de tolerância e de razoabilidade, que lhe parece harmonizável com os princípios elementares do jogo democrático.
[Andrew Sullivan, A Alma Conservadora. Quetzal. Trad. de Miguel de Castro Henriques. 336 págs. Adaptação de um texto publicado na revista LER de Dezembro de 2010.]