Arquivos Mensais: Dezembro 2010

O prémio

Capitão Haddock

Nos meses longos e intensos que se seguiram à Revolução dos Cravos, a publicidade paga dos jornais encontrou uma invulgar fonte de receita. Muitos portugueses que por um qualquer motivo se viram acusados de terem sido agentes ou informadores da PIDE resolveram declarar em público a sua putativa boa-fé, atestando perante Deus e a Nação que jamais haviam pertencido à famigerada corporação. Um dos casos com mais impacto na época foi o do «Inspector Varatojo», que por se ter servido deste pseudónimo num programa da RTP sobre literatura policial e criminologia se tornou suspeito, como aconteceu aliás com alguns inspectores, estes dos verdadeiros, da Polícia Judiciária, das Finanças ou do Ministério da Educação, de ser agente da PIDE.

Evoco este episódio por me ver envolvido numa situação relacionada com a nomeação para «blogger do ano» numa votação promovida pelo programa de televisão Combate de Blogs. Já aqui disse que distingo os presentes dos prémios e que me parece fazerem os segundos algum sentido quando se apoiam num colectivo e exprimem reconhecimento. Como me pareceu ser o caso, não me mexi e até estava a achar alguma piada ao lado puramente lúdico da iniciativa. Não me afligiu sequer a possibilidade longínqua de poder vir a ganhar o referido prémio. A Terceira Noite é um blogue individual, sem comentários – a média de acessos únicos diários desceu aliás quando por motivos de higiene mental acabei com eles –, escrito sem a intenção de falar para toda a gente e mais interessado em estabelecer laços com uma pequena comunidade do que em fazer doutrina e pôr os contadores a girar. Convenci-me por isso de que o número de pessoas que votariam em mim seria sempre residual. Limitei-me a tomar nota e a dormir sobre o assunto, visitando o site uma ou outra vez para acompanhar o jogo para o qual tinha sido convocado.

Ora acontece que estando de início num honroso mas modesto lugar a meio da tabela, saltei de repente para um destacado primeiro lugar. Não pulei de alegria pois sabia que ninguém me iria dar um cheque com muitos zeros em caso de vitória. Bem pelo contrário, fiquei ligeiramente preocupado quando constatei que a esmagadora maioria dos votos tinha entrado de forma maciça algures entre as 4 e as 7 da manhã, hora na qual todos os gatos são pardos e, em Portugal, a maioria das pessoas sã de corpo e de espírito se dedica a pôr o seu sono em dia. Daí a correrem suspeitas públicas de se terem instalado «rotativas de IPs» (é quase certo, aliás) ou de eu me dedicar a pressionar cidadãos eleitores maiores e vacinados, foi um passo. Claro que tudo isto vale dois caracóis, mas admito que não gosto de ver-me envolvido em eventuais fraudes para alcançar um qualquer galardão.

Como é evidente, as pessoas que estão na origem da votação nada têm a ver com os contornos deste episódio lamentável. Acredito por isso que compreendam ser legítimo que eu mantenha algumas suspeitas – se elas forem infundadas, tanto melhor, mas estou convencido de que o não são – e não goste de me ver atascado em terrenos pantanosos dos quais quero distância. Como diria o Almirante Pinheiro de Azevedo, nosso Capitão Haddock de carne e osso: «É uma coisa que me chateia, pá!»

Adenda em 1/1/2011 – Espero não ter de voltar a escrever sobre este assunto (triste, embora não insignificante, dada a sua relativa visibilidade). Relato apenas um episódio que deixo à consideração de quem aqui chegar por causa dos ecos. Nas últimas horas da votação choveram mais umas chapeladas, tendo a última decorrido a segundos da meia-noite, quando seria suposto estar toda a gente a festejar a passagem do ano: nessa altura entraram mais de 200 votos, fazendo com que o meu nome cortasse a meta em primeiro e ao sprint. Como qualquer pessoa inteligente entenderá, só alguém completamente estúpido cometeria uma falcatrua tão óbvia em causa própria. Quanto aos objectivos de outrem, desconheço-os.

    Atualidade, Cibercultura, Oficina, Olhares

    Liberdade a sério

    liberdade

    É sabido desde James Fenimore Cooper que a espionagem é uma das belas-artes. Muito mais criativa e inesperada – Robert Littell ou John Le Carré sabem bem do que falam nos seus romances – do que anuncia todas as manhãs o aborrecido «mundo real». Mas mais silenciosa também: o seu universo é da cor da penumbra e os personagens que o cruzam existem principalmente nos relatórios classificados como confidenciais, nas pequenas notícias saídas nas páginas pares dos jornais, ocasionalmente num obituário rebuscado. Na verdade, a maior parte das figuras que circulam por estes subúrbios da vida não se revê no agente 007. Não dá muito nas vistas, mantém uma vida aparentemente sossegada, sem o glamour do smoking ou o olhar vítreo de Madame M, sem o roçagar de lindíssimas mulheres ou perseguições em automóveis desportivos. De facto, a vida do espião típico, infatigável e eficaz não se distingue da vida do funcionário anónimo, cansado, de uma companhia de seguros com falta de clientela. Afinal este é um indicador de uma realidade maior que qualquer pessoa avisada deveria conhecer: a vida diplomática e a espionagem são irmãs gémeas apenas com cargos diferentes, ambas feitas de aparências, de enganos e de muitas máscaras. Mas jamais de distracções.

    Por isso se torna perigoso que nos deixemos arrebatar pela actividade frenética da WikiLeaks. Não, não me parece que Julian Assange seja um Robin dos Bosques, muito menos um Jean Valjean, e não me espantaria que fosse até mais um Julien Sorel. Um tipo arrivista que passa aos olhos de meio mundo por cândido, honesto e imprescindível. Esta é a minha suspeita – não provada, admito – e por isso não embandeiro em arco com elogios descomedidos ao homem. Só que uma eventual desconfiança não pode ignorar uma certeza que estes dias têm provado: a de que a repressão da actividade da organização está a a servir de pretexto para um ataque generalizado contra a liberdade de expressão e de informação através da Internet. E isto de modo algum pode aceitar-se. Devemos pois enfrentar a arbitrariedade dos poderes que visam abafar vozes em condições de questionar a fiabilidade dos poderosos, por muito que o seu combate possa ter propósitos e se sirva de meios um tanto enigmáticos. Afinal a WikiLeaks não tem qualquer programa claro, mais parecendo um megafone de feira do que uma voz afirmativa em prol de uma causa com objectivos. O que não significa que deva ser calada e que a informação que entretanto vai passando não possa servir para questionar o comportamento arrogante e bem pouco transparente de numerosas figuras do topo da política internacional.

    Por isso também é importante apoiar as acções destinadas a impedir por todos os meios que tirem a voz a Assange. Sem esquecer, todavia, que um combate ainda mais difícil e necessário travam aqueles que em países como a China, Cuba ou a Coreia do Norte, como o Irão, a Líbia ou mesmo Angola, se batem também pela liberdade de opinião como valor absoluto. Sem esquecer que sobre estes incorrem perigos perto dos quais aquilo que pode acontecer aos activistas do WikiLeaks não passa de cócegas. No domínio do exemplo dado e de um ponto de vista bem objectivo – o da defesa intransigente de uma liberdade sem adjectivos, independente daquilo que possa fazer-se com ela – não vejo em que devam distinguir-se substancialmente os riscos assumidos, devido à actividade que mantêm ou desenvolveram em rede, pelo australiano Assange, pela cubana Yoani Sánchez ou pelo Nobel chinês da Paz Liu Xiaobo. Nestas matérias é preciso manter todos os piscas ligados.

      Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

      O triunfo dos vencidos

      loser

      Escritos sobre a História não corresponde à tradução integral de On History, a colecção de 22 textos de Eric Hobsbawm editada em 1997. Falta-lhe o prefácio original, algo deslocado aliás desde o início, no qual o historiador fazia a sua profissão de fé num rígido dogmatismo materialista imediatamente contrariado pelo arrojo dos textos que se seguiam. Dos 14 ensaios que se encontram neste volume, um primeiro grupo, que reúne os mais antigos, testemunha principalmente  um certo esforço da parte do autor para responder a alguns dos dilemas colocados durante a década de 1970 aos avanços do conhecimento histórico. Um bom exemplo é «O que devem os historiadores a Karl Marx?», no qual se regista a dívida da historiografia tributável à análise marxista. Já o segundo grupo é bastante mais interessante, uma vez que integra reflexões sobre o modo como as rápidas mudanças do mundo ocorridas nas duas últimas décadas do século passado se cruzam com a História como saber e com a profissão dos que estudam as suas manifestações contemporâneas.

      Dois dos ensaios são exemplares deste género de esforço: enquanto em «O Presente como História» Hobsbawm reflecte sobre as tarefas e das dificuldades do historiador que vê acontecimentos decisivos passarem-lhe diante dos olhos, em «Poderemos escrever a História da Revolução Russa?» considera o uso de técnicas contrafactuais – não aconteceu, mas poderia ter acontecido – como processo para questionar factos mais ou menos recentes sobre os quais não é possível existir consenso. Embora editados entre nós com atraso, estes estudos, marcados sempre pela enorme erudição e pela excelente capacidade comunicativa que são próprios do autor, deixam-nos também, numa ligação com muitos dos seus temas predilectos, um aviso inspirador: apesar de, no imediato, continuarem a ser os vencedores a escrever a História, a longo prazo será a intervenção dos vencidos a torná-la verdadeiramente inteligível. Reconforta-nos admitir pelo menos essa possibilidade.

      Eric Hobsbawm, Escritos sobre a História. Relógio d’Água. Trad. de Miguel Serras Pereira. 264 págs.

        Atualidade, História

        Tédio

        tédio

        Sem ser adivinho, consigo decifrar à distância de cinquenta anos uma notícia em destaque no dia 4 de Dezembro de 2060, quando se comemorar o quadragésimo aniversário do desaparecimento do último jornal em papel e as gerações mais novas falarem todas, com alguma familiaridade, um 官话 técnico (ou mandarim simplificado) ensinado desde a pré-primária: «o Parlamento Europeu vai discutir a criação de uma nova comissão de inquérito destinada a reapreciar o caso Camarate». Se ainda for vivo, nesse dia morrerei de tédio.

          Apontamentos, Devaneios

          Futebol é isso mesmo

          futebol de sofá

          Não será um tema prioritário e que nesta altura difícil nos deva preocupar especialmente o facto da candidatura de Portugal e Espanha à organização do Mundial de Futebol de 2018, à qual concorriam também a Inglaterra, a Holanda/Bélgica e a Rússia, ter sido preterida em favor da última. Menos ainda nos deverá atormentar ter o Qatar ganho à Austrália, aos Estados Unidos, ao Japão e à Coreia do Sul na escolha para organização do Mundial de 2022. Mas talvez já nos deva inquietar um tanto verificar que venceram a contenda as candidaturas que menos condições estruturais ofereciam (estádios prontos, vias de comunicação funcionais, alojamento com oferta, público indiscutivelmente interessado) mas que mais obras a erguer da raiz e rios de dinheiro a gastar com elas prometiam. Estão a pensar no mesmo que eu, não é verdade?

            Apontamentos, Atualidade

            notas & recados

            Correio

            #14 – A revista trimestral Contretemps, uma publicação de orientação radical fundada em 2001 pelo filósofo Daniel Bensaid e pelo sociólogo Philippe Corcuff, colocou online, em pdf, as edições saídas entre Maio de 2001 a Maio de 2008. Temas sempre actuais e algumas intervenções inspiradoras a não perder. Só para quem leia em francês, évidemment. Tudo aqui.

              Olhares, Opinião

              Perigoso é ter ideias perigosas

              Danger

              Em Ideias Perigosas para Portugal João Caraça e Gustavo Cardoso inspiraram-se numa ideia de John Brockman e acomodaram-na à procura de futuros para Portugal e para os portugueses. O projecto juntou testemunhos, originários de diferentes quadrantes disciplinares, de pessoas que se dispuseram a «pensar perigosamente». Cada argumento deveria ligar-se a «uma alteração da ordem que a ordem existente não pode conter», colocando em causa «a forma como dominamos a realidade». Todavia, do confronto entre este objectivo sedutor e o conteúdo dos 62 depoimentos publicados resulta por vezes algum desapontamento. As razões serão múltiplas mas subordinam-se a uma constatação: a de que não pode fazer-se equivaler o que é diverso ou destoante, mas exequível, ao que é verdadeiramente perigoso, arriscado, subversivo. De facto, algumas das intervenções contidas neste livro preocupam-se mais com o inventariar de lógicas viáveis do que em conceber viragens profundas ou impossíveis desejáveis. Fazem-no até de uma forma bastante prudente e calculada – logo, pouco perigosa –, como acontece com as que abordam o aperfeiçoamento dos processos administrativos, a eficácia do sistema judicial, a redução do funcionalismo público, o exercício do poder como processo técnico e a descentralização política. Aqui abundam propostas ainda aceitáveis numa lógica de consenso.

              Mas deparamos também com projecções arrojadas cujos autores foram capazes de pensar utopicamente para lá do factível, aventurando-se por trilhos difíceis que nos fazem conjecturar sobre aquilo que não é mas poderia ou deveria ser. Como as que reclamam uma expansão sem complexos dos saberes em rede, a publicitação sistemática dos projectos fracassados, a experiência tentadora de um semestre sem governo, um amplo desarmamento das forças armadas, uma federalização europeia empreendida sem preconceitos, o alargamento dos tempos e dos meios do lazer, o repensar integral do pulsar das cidades, a refundação das universidades ou o regresso ecológico ao saber dos clássicos. Elas demonstram o valor substancial da boa ideia que presidiu à organização deste volume. A procura de outras vozes, enraizadas na experiência criadora das artes e das poéticas, numa prospecção afoita no campo das humanidades, na dimensão estruturalmente especulativa da ciência ou na intervenção inventiva da radicalidade política, filosófica e social, poderá oferecer um resultado ainda mais audacioso e incitante. O matemático Orlando Neto esclarece, no elogio do pensamento crítico do qual resulta um dos mais estimulantes textos, que «perigoso, perigoso, é implementar ideias». O exercício tem, pois, pernas para continuar o seu caminho.

              [João Caraça e Gustavo Cardoso (Coord.), Ideias Perigosas para Portugal. Propostas que se arriscam a salvar o país. Tinta-da-China. 304 págs. Adaptação de um texto publicado na revista LER de Novembro de 2010.]

                Atualidade, Devaneios

                Kindlemania (5)

                ebooks/books

                Agora que pude usar durante umas quantas horas um iPad passei a tomar como certas algumas das diferenças que já me constava separarem as máquinas da Apple e da Amazon. Não creio, no entanto, que faça muito sentido procurar definir qual o melhor, se o iPad ou o Kindle, uma vez que se trata de aparelhos muito diferentes, com capacidades e objectivos inteiramente diversos. Aliás, fiquei seguro de que poderei vir a servir-me de ambos sem que a dupla escolha venha a impor qualquer tipo de sobreposição ou forma de ansiedade.

                O iPad oferece mil possibilidades, sendo a leitura de livros e jornais apenas uma delas. Para este efeito, existem numerosas aplicações, uma das quais é até nativa da Amazon, permitindo esta a qualquer leitor começar a ler um livro no Kindle, continuar num computador desktop, prosseguir num netbook e encerrá-lo no iPhone ou no iPad. As marcas deixadas num suporte serão automaticamente reconhecidas no outro. O monitor do iPad é maior e mais brilhante do que o do Kinde, sendo mais fácil, graças ao ecrã táctil, marcar as páginas, virá-las ou fazer anotações. Mas cansa mais os olhos. E dilui a atenção, tantas são as possibilidades ao alcance dos dedos. Além disso, a máquina da Apple é maior e bastante mais pesada do que o Kindle, sendo praticamente impossível segurá-la como a um livro se não a tivermos assente sobre uma mesa ou recostada num tripé adquirido como acessório. Ler na praia ou numa esplanada torna-se pois um tanto penoso, piorando a experiência se existir demasiada luminosidade exterior: o tão falado «efeito de reflexo» existe mesmo no iPad mas é, é mesmo, absolutamente inexistente no Kindle.

                Insisto pois: o leitor de e-books Kindle aproxima-nos do livro tradicional, cuja abordagem facilita bastante ao libertar-nos de algumas das suas limitações; já o tablet iPad leva-nos para uma dimensão diferente, na qual a cor, o movimento, o hipertexto e o hipermédia, a comunicação com o exterior em tempo real, implicam outra forma de ler, de ver e de interagir.

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                  Cibercultura, Novidades, Olhares

                  A menina dança?

                  Encontrei no Arquivo da Internet Portuguesa alguns pequenos textos publicados noutros blogues e que julgava perdidos. Recupero para já este, escrito em 2005 após o encontro casual com um manual de dança de salão. Segue com dedicatória a quem tem feito constar de maneira infame que este blogue «anda demasiado sério».

                  A menina dança?

                  Uma tarde de domingo será sempre uma boa tarde para rodopiar. Por companhia Dança Comigo, um compêndio achado numa feira do livro que oferece por um singelo euro os conselhos avisados de quem se vê logo ser pessoa experiente. Anuncia o autor, o Sr. Castelló, que, ao dançar, deve «a dama» saber-se inequivocamente conduzida. E, dócil, sacarina, «sentir a mão do cavalheiro nas suas costas e na sua omoplata, com firmeza e segurança». Certo o lesto varão de que à expectante fêmea «mão frouxa e apática lhe não inspirará confiança». Deverá, porém, mostrar-se a mulher complacente para com as dificuldades que, nas viravoltas do baile, possa o acompanhante revelar. Se tal acontecer, solução haverá, esforçando-se ela por dançar «um pouco em pontas e tentar voltar o dedo grande do pé em direcção ao passo que vai dar, sempre como prolongamento do tornozelo e nunca da planta do pé». Sugere ainda o mestre que, seja qual for a situação, se revele sempre a maior compreensão «para com os cavalheiros principiantes», pois, magnânimo, assegura que «um olhar, um gesto ou uma palavra de censura podem desmoralizar completamente o cavalheiro inseguro», sendo certo que, a partir de tão fatídico momento, este «não mais consiga acertar durante o resto da música». Quase duzentas páginas, suadas e vertiginosas, de contributo editorial para a compreensão entre os povos. Igualmente capazes de se revelarem uma fonte de aflições e de eventuais entorses. Ou de sucesso no amor.

                    Apontamentos, Devaneios, Etc.