Sobrinha-bisneta do imperador Napoleão I, a princesa Marie Bonaparte (1882-1962) foi uma figura central para a definição da psicanálise enquanto prática clínica e saber autónomo e reconhecido (ou antes, razoavelmente reconhecido, uma vez que ao fim de mais de um século de combate os seus inimigos permanecem activos e vigilantes). Muito próxima de Freud, a quem ajudou pessoalmente quando em 1938, já com 71 anos, este precisou de sair de Viena para escapar dos nazis, Marie usou a sua enorme fortuna – em boa parte herdada do avô, François Blanc, fundador do Casino de Monte Carlo – para financiar encontros científicos e trabalho de investigação na disciplina que ela própria viria a adoptar profissionalmente. O eco longínquo de um destes trabalhos acaba de me chegar através de uma referência num artigo de Evan Osnos saído na New Yorker («Meet Dr. Freud», sobre a recente voga da psicanálise na China após longas décadas de perseguição e clandestinidade). Ali se refere a dada altura o financiamento, por parte de Marie, de uma viagem do psicanalista e antropólogo húngaro Géza Róheim à Austrália com o objectivo de determinar se entre os aborígenes existia complexo de Édipo. Róheim concluiu que sim, em apoio da ocorrência de uma estrutura edipiana universal. A conclusão é respeitável, mas é também irresistível a analogia que pode ser feita entre aquela pesquisa e os esforços dos evangelizadores católicos do século XVI para determinarem pela observação empírica – por vezes com recurso à tortura – se os ameríndios possuíam alma (já que, de acordo com a opinião à época dominante, os negros não a tinham de todo). Fica a declaração urbi et orbi de que esta analogia vale por si, não transportando consigo qualquer preconceito em relação à teoria e à prática da psicanálise, à bondade da princesa Marie ou ao trabalho do notável ex-bolseiro húngaro.