Provavelmente escreveu-se mais nos jornais e nos blogues sobre o sentido da vida do Bloco de Esquerda durante estes dias do que nos últimos dois ou três anos. O tom tem oscilado entre o apocalíptico, o céptico e o afirmativo, conforme corresponda a uma previsão da queda do partido, à percepção da inutilidade da moção de censura do governo ou à ideia de que esta possa ajudar a separar as águas. Situo-me na terceira destas vias, embora não da mesma forma que os dirigentes do Bloco. Não me parece nada que a iniciativa possa servir para demarcar os campos e perceber de que tamanho é a direita, criando condições para uma solução política à esquerda. Já foi dito e redito o que é evidente mas algumas esforçadas declarações têm tentado negar: se a moção fosse aprovada o governo saído de novas eleições seria mais à direita; não sendo aprovada, como irá acontecer, ajudará a estabilizar a autoridade política da actual direcção do Partido Socialista. Pelo meio, a proposta impeliu muitos cidadãos descontentes com o actual governo – gente sem partido principalmente, mas também socialistas críticos e numerosos simpatizantes seus – para uma posição de admissão contrariada da continuidade de Sócrates. Porque à política do «quanto pior, melhor» – da qual, ao contrário do PCP, até agora o Bloco parecia ter-se preservado – as pessoas comuns, sobretudo as que sabem que um governo PSD desmantelará sem piedade o que ainda resta do Estado social construído depois de Abril, preferem um «p’ra pior já basta assim».
A separação das águas da qual falo é outra, e bem mais profunda. Ela passa por uma definição dos objectivos do Bloco em temas essenciais, como os que dizem respeito à sua relação com a tomada e a conservação do poder. Em cima da mesa permanece por resolver uma questão que se articula com este problema: será a participação numa solução de governo situada à esquerda compatível com a ruptura radical com o PS e o seu eleitorado? Não falo apenas da direcção de José Sócrates, mas antes do Partido Socialista como partido complexo contra o qual, neste país, não poderá existir solução política governativa à esquerda. Num artigo publicado no site esquerda.net, o deputado bloquista Jorge Costa escreveu: «Se a direita votar a moção, vamos a eleições. E então que paguem o PS e o PSD pelas políticas nocivas que são de ambos. (…) E que se levante uma nova maioria social e política, à esquerda, capaz de governar para um rumo novo no país, capaz de romper com Merkel e de enfrentar a crise partindo das necessidades populares». Estamos a falar de quê? De uma nova tomada do Palácio de Inverno seguida de eleições «à venezuelana»? Não quero acreditar que seja essa a ideia, mas será bom que se perceba aquilo que é proposto.
Outro problema que mais tarde ou mais cedo será central para o Bloco, o seu papel e a sua sobrevivência, tem a ver com a actividade e a organização do trabalho político fora dos quadros parlamentar ou autárquico, que têm conservado um peso excessivo, para não dizer esmagador. Será justamente pelo facto dos diferentes quadros eleitoral e das suas consequências terem vindo desde há anos a tornar-se absolutamente centrais que esta moção pareceu um acto natural, quase obrigatório. Um empenho muito mais constante, decidido e organizado na vida sindical, no trabalho associativo e cultural, na construção da luta social, nos mecanismos de produção e propaganda da alternativa política, poderia contribuir para ampliar uma cultura de protesto e uma opinião que exija, também nos locais de trabalho e na rua, uma maneira de governar menos dependente das imposições externas, subordinada a outro padrão de desenvolvimento, e sobretudo mais justa e solidária. Trazendo para o campo dos que a requerem as pessoas, muitas das quais fazem e continuarão a fazer parte do eleitorado PS, ou até PSD, que sentem na pele a inexistência de uma escolha credível.
O resultado infeliz da infeliz iniciativa do Bloco – que poderia fazer todo o sentido num momento diferente, no qual as saídas possíveis não fossem as que neste momento se vislumbram – foi colocá-lo na defensiva. Defendendo-se até, um tanto crispadamente, do descontentamento e da incompreensão de muitos militantes e simpatizantes. Claro que, como acertadamente escreveu o meu amigo José Manuel Pureza, por causa disto o Bloco não irá desaparecer, nem terá de pensar «na reforma antecipada», nem desistirá «de ser fiel aos seus propósitos fundadores». Mas convirá que quem o dirige resolva internamente, se decida e se explique sobre o que pretende: se mudar Portugal com base na construção de uma aliança politica e partidária e de um novo contrato social com uma forte componente reivindicativa, se procurar imitar a via bolchevique da tomada do poder por uma minoria convencida de que tem «as massas» e a razão histórica do seu lado.