Arquivos Mensais: Fevereiro 2011

Esperança e desengano

No Libération de hoje, Bernard Guetta sugere quatro novos vectores de desenvolvimento nos processos de mudança política a decorrerem nos Estados islâmicos. O primeiro refere-se a um despertar do Islão associado à ampliação daquilo a que chama os valores universais da democracia; o segundo diz respeito ao peso adquirido por uma juventude numerosa, descontente e impaciente, que recebe da Internet o impacto cultural da globalização; o terceiro dá um grande valor ao exemplo da actual Turquia, permitindo mostrar que islamismo, laicidade e desenvolvimento económico não são inconciliáveis; e o quarto sugere a instalação inexorável de um novo «xadrez democrático» que vai de uma esquerda activa e moderna a partidos religiosos conservadores mas capazes de superarem os sinais bestiais do islamismo. Guetta é um jornalista sénior, especialista em geopolítica, que conhece razoavelmente o universo do qual fala desta forma tão animadora, e nós, depois de habituados a olhar para aqueles territórios como inapelavelmente esmagados por ditaduras brutais e líderes religiosos todo-poderosos, facilmente olhamos as suas projecções como sinais de uma transformação positiva. Só que este optimismo em versão wishful thinking é perigoso e desarmante, pois nada nos garante que o Islão aparentemente democrático, moderno e urbano, que de repente tirou o véu e mostrou um rosto benigno, não seja rapidamente esmagado, antes ainda de deixar semente, pelas hordas de resignados, facilmente manipuláveis pelos tiranos ou pelos pregadores, que têm atrás de si séculos de uma cultura de submissão e pouco treino nas subtilezas da democracia. Por aqui, no conforto desta Europa por estes dias fria e chuvosa, esperar que aconteça aquilo que mais desejamos – deparar de repente com um Islão afável, de gravata, óculos de marca ou boné de basebol – pode levar a uma desilusão imensa. O jogo está lançado mas o desfecho é imprevisível. E como nada podemos fazer, resta-nos esperar por um bom resultado, sem sabermos muito bem qual possa ser ele.

    Atualidade, Olhares, Opinião

    Entre sombras e silêncios

    Em crónica saída na revista New Statesman, o escritor ucraniano Andrei Kurkov descreveu Sussurros, de Orlando Figes, como «uma fascinante enciclopédia das relações humanas», considerando-o, a par do Arquipélago Gulag, de Soljenitsine, e dos Contos de Kolima, de Varlam Chalamov, como «um dos maiores monumentos literários do povo soviético». Não se trata de uma desnecessária hipérbole, pois esta é, de facto, uma obra soberba e claramente inovadora. Convém à partida desvanecer um eventual equívoco: este não é mais um dos muitos estudos históricos descritivos e estatísticos sobre Estaline, o estalinismo e as suas vítimas proporcionado pela abertura dos arquivos que se seguiu à Glasnost. Mergulhando nas sombras, surge antes como uma abordagem da vida diária das pessoas comuns e da forma como esta foi condicionada pela engenharia social do «homem novo». (mais…)

      História, Memória, Olhares

      Armadilhas do PowerPoint

      PowerPoint

      Fui e sou um utilizador prudente do PowerPoint. Pareceu-me desde o início um expediente útil mas potencialmente negativo, por simplificar aquilo que é complexo, por transformar com dois cliques o que é trama, o que é novelo, numa fórmula perfeita ou em rede de linhas demasiado regulares. O estilo de operação ao qual o seu utilizador recorre tem passado muitas vezes por «pedagógico» e é justamente aqui que se situa a fonte da minha desconfiança. Debati este tema há algumas semanas durante uma aula de mestrado e por um acaso – ou talvez não – dias depois encontrei na Visão uma entrevista com o jornalista francês Franck Frommer na qual este vem ao encontro das minhas dúvidas. A entrevista saiu a propósito do lançamento, pela La Découverte, de um livro de Frommer cujo título é todo um projecto: La pensée PowerPoint – Enquête sur ce logiciel qui rend stupide (O pensamento PowerPoint – Inquérito sobre este programa que estupidifica). O autor considera-o de facto um dispositivo perverso: «Dá a ilusão de criatividade, mas, ao mesmo tempo, é constrangedor. Pouco permite sair de um fio condutor linear e não favorece a interactividade. Parece muito ‘científico’ embora seja simplista. Como transforma toda a argumentação em listas de pontos, impede o debate. Inventa laços de causalidade artificiais.»

      Algumas pessoas poderão dizer que isto é verdadeiro, mas que, em contrapartida, nas actividades da sala de aula ou durante uma conferência o recurso ao programa responde também às dificuldades de percepção dos alunos ou do público, podendo ainda, como um teleponto, ajudar o orador a ser mais claro, metódico e convincente. Existirá um grau de verdade nisto, sem dúvida. Mas podemos e devemos também colocar o problema ao contrário: não convidará a simplificação induzida pelo recurso sistemático a este dispositivo à preguiça de quem comunica e à passividade de quem ouve? não fará ela com que se vá perdendo o treino na percepção de formas complexas de pensamento e no desenvolvimento de uma capacidade retórica rica e sofisticada, integrando quem assiste num plácido e silencioso rebanho de carneiros? Sei que uma resposta cabal as estas perguntas não pode inferir-se de uma mera opinião individual, mas eu penso que sim. É quase sempre assim que acontece. E por isso vou continuar a usar o PowerPoint muito moderadamente, desligando o projector logo (ou sempre) que possível.

        Atualidade, Cibercultura, Olhares