Young reds

Reds

Ontem, 6 de Março, o Partido Comunista Português fez 90 anos. Pode dizer-se, e nem poderia ser de outro modo, que este PCP pouco tem a ver com o de 1921. Claro que não tem, como pouco tem a ver com o de 1959, o de 1975 ou mesmo o de 1991. O país e o mundo foram mudando, o comunismo também, e os comunistas a mesma coisa, ainda que possam mudar mais vagarosamente. No entanto, para além das linhas organizativas e de orientação táctica pelas quais passam as diferenças, por vezes profundas, que o tempo faz sobressair, existe um sinal de continuidade que não tem a ver apenas com a cor do estandarte: desde o início, o PCP sempre afirmou na sociedade portuguesa uma atitude de resistência às desigualdades do capitalismo e fez ouvir a sua voz em defesa dos direitos mais essenciais dos trabalhadores. Sempre da melhor maneira? Com certeza que não, e os comunistas mais honestos, informados e lúcidos – ou mesmo os inflexíveis e coléricos num momento de pausa – serão com toda a certeza os primeiros a reconhecê-lo. Mas para quem não tenha memória, ou não conheça a História, é importante relembrar que foram muitos os homens e as mulheres que dedicaram a vida aos interesses dos outros e o fizeram, ou ainda o fazem, debaixo da bandeira vermelha da foice e do martelo.

Esta é uma realidade indesmentível, que divergência alguma, ou crítica alguma, está em condições de contradizer. O PCP é um partido histórico, que conquistou a pulso, geração após geração, o direito a existir e a ser ouvido, e que, independentemente das posições políticas questionáveis, erradas ou mesmo inconsequentes que possa muitas vezes defender, continua a merecer a consideração dos democratas. Merece-a enquanto permanecer como partido que aceita as regras básicas da democracia representativa – para cuja fundação teve aliás um papel decisivo – ainda que, entre os comunistas portugueses, ou nas suas margens, exista quem de facto a despreze na essência, aspirando a uma outra, supostamente mais pura, «socialista» ou «popular», na qual a diferença de opinião esteja condicionada pela autoridade de quem se arroga, sem direito a contraditório, a falar em nome de todos.

Por causa deste aniversário, muitos meios da comunicação generalista têm dedicado notícias, textos de opinião e reportagens ao universo passado e presente do Partido Comunista. A maioria fê-lo porém sem um grande esforço de reflexão crítica, limitando-se a pormenores que mais procuram exibir aspectos avulsos da vida partidária do que compreender o seu sentido. Algumas dessas peças voltaram-se entretanto para um dos mitos e uma das aparentes contradições da vida do partido: a força dos seus jovens e o facto «exótico» destes subsistirem dentro de um partido que os jornalistas ou os seus editores presumem como velho e retrógrado. Como se se tentasse inquirir junto de um habitante de Marte os motivos pelos quais continua a viver num planeta tão inóspito. Mas claro que estes jovens existem, ainda que tal não aconteça com a expressão que a direcção do PCP encena, chamando-os para a frente dos actos públicos ou cedendo-lhes lugares nas bancadas parlamentares (esquecendo-se aqui, talvez, de que para se ser jovem não basta a data de nascimento no cartão do cidadão). Goste-se ou não, a verdade é que a bandeira comunista, bem como alguns ícones a ela associados, continuam a despertar a esperança ou o entusiasmo de muitas pessoas com quinze ou vinte anos. Uma realidade que não faz qualquer sentido negar e vale a pena tentar compreender.

Perguntarão uns tantos: o que farão milhares de jovens nas fileiras do PCP quando, aparentemente, ele configura muito daquilo que uma juventude moderna, tolerante e informada – como hoje o é maioritariamente a nossa – recusa como parte do mundo que é ou que quer que um dia seja o seu? Como podem pactuar essas pessoas, que nasceram e cresceram em democracia, e com acesso formal a uma quantidade sem precedentes de informação, com posições ambíguas nas questões de política internacional, defendendo regimes despóticos e de partido único? Como podem reconhecer como válida a imposição de um modelo totalitário, baseado numa concepção pseudocientífica da realidade que procura excluir todas as outras? Como podem admitir que alguma vez possa existir um partido, autorepresentado como vanguarda, que acredita deter a verdade e ter o dever de a impor aos outros? Como podem aceitar pertencer a um «partido de classe» num mundo, e particularmente numa região desse mundo, no qual a mutabilidade social já questionou o lugar e o próprio conceito de «classe operária»? Como podem conviver com uma concepção retrógrada da cultura urbana e juvenil, apenas tolerada com parte da paisagem inevitável sobre a qual os «melhores jovens», os da JCP, quase sempre ética e culturalmente intransigentes, devem trabalhar? Como podem admitir uma mitificação da História que transforma as experiências desastrosas e massivamente assassinas do «socialismo de Estado» em modelo traído e fundamentalmente justo?

Pode falar-se de alguma ignorância, e esse será o caminho mais fácil. Quando falamos de pessoas jovens que têm em regra uma formação mais avançada e completa do que os seus pais ou os seus avós tiveram, não falamos, geralmente, de pessoas com um conhecimento da história do comunismo, do mundo contemporâneo e dos actuais equilíbrios geopolíticos que lhes forneça uma perspectiva ampla, comparada e informada. Nem falamos também de um ambiente juvenil propício ao debate, à procura, ao questionamento, como o era, em boa parte, pelo menos nas cidades, o de há três ou quatro décadas atrás. Mas só por si esta falta de informação não chega para explicar a atracção de um número importante de jovens pelo símbolo da foice e do martelo, pela efígie de Lenine ou do Che, pela língua de madeira que continua a ser a da generalidade dos dirigentes comunistas de leste a oeste. Algo mais será preciso para que possamos compreender a sua escolha, e esse algo só pode ser favorável, no caso português, a um retrato desse partido que olham como positivo e mobilizador. Observando, por exemplo, a história do partido como uma narrativa exemplar, irrepreensível, na qual apenas tem lugar o heroísmo e a generosidade, ou a vontade formal de combater a injustiça e de resistir à opressão. Ou colhendo a ideia de que um mundo melhor é possível e inevitável. Ou ainda, e acima de tudo, desenvolvendo a consciência de que têm ali um lugar, uma «casa», dentro da qual a esperança e os anseios altruístas e de realização pessoal podem ser vividos em colectivo.

É isto que o PCP oferece a muitos jovens e que mais força alguma – nem mesmo o Bloco de Esquerda, demasiado centrado na intervenção parlamentar e sem fornecer uma metanarrativa histórica reconfortante – está em condições de oferecer de maneira organizada. Por isso continua a seduzir um número apreciável de pessoas jovens, naturalmente generosas e prontas a acreditar em absolutos. Não existe mal algum nisso, aliás, desde que elas possam um dia perceber que as suas «certezas» não são verdades insofismáveis e devem sempre ser sujeitas à crítica. Desde que compreendam não existem princípios, autores ou valores, por mais justos que possam ser ou parecer, que não devam ser confrontados com a mudança do mundo. Vamos ser um pouco visionários: com pessoas assim, mais informadas e abertas, acabará por ser o próprio PCP a mudar. E a sua longa história tornar-se-á então ainda mais rica. Eu avisei: vamos ser visionários.

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