Prossigo com a série de posts sobre os dilemas que enfrenta o Bloco de Esquerda. Se o primeiro, sobre a demissão da liderança, terá sido quase consensual, este sê-lo-á bastante menos. Contém um esboço de diagnóstico ao qual se seguirão adiante algumas hipóteses de terapêutica. A parte mais difícil, onde se diz ao doente que está doente, segue aqui. Mas o que tem de ser…
Os resultados eleitorais não deixam margem para dúvidas: algo correu mal. Mas ao contrário do que têm deixado entender certos dirigentes e militantes, com a capacidade crítica um pouco esmaecida pela decepção e a ressaca do day after, esse algo não foi com toda a certeza a ingratidão do eleitorado. Incluindo-se neste aquela parte da «geração à rasca» que com todas as probabilidades se absteve. É verdade que podemos, num ou noutro caso, falar com todo o sentido de um deslizamento dos números ditado pelo «voto útil» ou pelo medo. Mas a utilidade do voto não é um factor de importância menor e medo só pode ter quem enfrenta a escuridão sozinho e desarmado, não quem sabe para onde vai e avança acompanhado. A verdade é outra: o que aconteceu tem uma origem profunda, com toda a certeza bem menos conjuntural do que se está a tentar mostrar. Procurá-la e compreendê-la pode ser incómodo, obrigar a algumas mudanças, eventualmente a um ou outro abandono, mas não ao enfraquecimento do projecto político solidário e adaptado aos tempos difíceis em que vivemos que o Bloco de Esquerda tem materializado e pode manter.
O problema central parece-me relativamente fácil de identificar: existiram duas escolhas que era preciso fazer mas que foram na direcção errada. A primeira diz respeito à identificação do BE com o que podemos considerar um «socialismo verdadeiro», assumindo uma componente democrática e intensamente solidária, mas voltada para a afirmação de programas materializáveis, ou então, no sentido oposto, com um «comunismo moderno», próprio dessa esquerda caviar – um epíteto lançado pela direita e rapidamente adoptado pela ortodoxia – que habita o sistema e dele recolhe alguns benefícios mas tem dificuldade em renunciar à nostalgia maximalista e revolucionária. Aos olhos do eleitorado reformista da classe média urbana, que representa o grosso dos eleitores do Bloco, a segunda opção tem vindo a surgir como dominante. E isto foi fatal. A segunda escolha ocorreu numa área completamente diferente e que parece (mas não é) contraditória em relação à primeira: o partido tem-se concentrado em excesso, tem-se esgotado, em termos públicos e organizativos, no trabalho parlamentar e nas agendas eleitorais, subvalorizando outros campos da vida colectiva e do combate social.
Do lado de fora, foi então ficando a «política de causas», tão criticada pelos conservadores e os neoliberais mas que foi durante anos o espaço de crescimento e de enriquecimento político e moral do Bloco. Foi ficando a intervenção no universo sindical, obviamente uma não-prioridade quando este tanto carece de iniciativa e renovação. Foi ficando a presença visível no espaço estudantil, na actividade associativa no campo cultural e da intervenção cidadã, áreas às quais uma boa parte do potencial eleitorado bloquista é sensível. Depois foram-se juntando outras nódoas na camisa: a presença dentro o partido de sectores minoritários mas hiperactivos que ainda defendem uma intervenção política violenta e «de classe» (bem visível na recente Convenção e mostrada com grande impacto pelos meios de comunicação); a hesitação constante nos temas de política internacional (misturando europeísmo e antieuropeísmo, ou sendo-se condicionado em causas envolvendo os direitos humanos por um antiamericanismo por vezes cego); a redução de uma intervenção visível e prioritária em áreas do combate social que fazem parte das expectativas de uma parte significativa da esquerda (as mulheres, as minorias sexuais, a ecologia, o racismo, a xenofobia, claramente rebaixados na escala de prioridades). Muito importante também a política de alianças esboçada: a aproximação ao PCP foi desastrosa, e tanto mais quando foi feita «a pedido» e não como resultado de uma transformação deste partido (um assunto ao qual voltarei).
Finalmente, e como motivo mais directo da hecatombe eleitoral, algumas escolhas recentes falhadas e previsivelmente funestas, como aquelas que se prenderam com a gestão da crise política e financeira. Foi devastadora e com consequências gravíssimas a apresentação da moção de censura, que deu objectivamente um primeiro fôlego à direita, e depois a indisponibilidade para negociar ainda que muito pontualmente com o PS, de modo evitar, pelo menos, o mal maior no qual acabamos de cair. Como foi desastrosa a inexplicável escolha de recusar publicamente falar sequer com a troika que negociou o humilhante empréstimo e ainda de afrontar os militantes e simpatizantes que a criticaram por verem nela um sinal de desnecessário «esquerdismo». Como foi fatal a incapacidade para a apresentação de uma alternativa clara e credível em termos de projecto de governabilidade. Projecto esse que, como a maioria dos eleitores bem sabe, passará sempre, goste-se ou não, por um Partido Socialista que, apesar da herança de Sócrates e da deriva neoliberal, é complexo e não pode ser visto como mera incarnação do Mal. [continua]