Do arquivo dos meus blogues-antes-deste. Escrito em Outubro de 2005.
Há cerca de três décadas, quando as correntes «de raiva e esperança» dos sessentas haviam suavizado já o furor, foram muitos os que desistiram dos planos para mudar o mundo a troco da aceitação silenciosa das regras conviviais do neoliberalismo. Só uns quantos obstinados procuravam ainda resistir-lhe. Portugal vivia na altura o transe da sua doméstica metamorfose, mas mais além, do lado de cá do Dniepre como da outra banda do Atlântico, cresciam ou radicalizavam-se os movimentos, autoproclamados como vanguardas, que se propunham inverter os ventos através da acção directa das minorias esclarecidas e activas. Mostrando-se como exemplo ou servindo de rastilho para o que acreditavam poder ser um retorno da acção redentora «das massas». Integravam a arquitectura de um terrorismo – à época selectivo, e quase benigno quando comparado com o que hoje conhecemos – que os governantes procuravam conter. E se não conquistavam grandes adesões, convocavam alguma simpatia da parte daqueles a quem o sistema imposto pelos vencedores da ressaca «sessentista» parecia realmente odioso.
Foi aqui que interveio um conjunto de obstinados, convencidos da possibilidade de encontrar na guerrilha urbana um meio para conseguir o enfraquecimento do Estado e transportar as multidões de deserdados do capitalismo ao assalto do poder do dinheiro e à fundação messiânica de uma nova ordem. Em O Que é Isso, Companheiro?, Fernando Gabeira, que em 1969 participou do sequestro do Embaixador americano no Rio, descreve como «tudo foi acontecendo tão de repente» nessa espiral de revolta individual vivida em colectivo. No Brasil e na Argentina, na Alemanha e na Itália, em Espanha, em Portugal, emergiam organizações, desiguais nos métodos, no vocabulário e na inspiração teórica, autónomas ou agindo de maneira concertada, mas coincidindo no objectivo último da negação da autoridade do Estado, da insurgência contra a apatia quietista que se vinha instalando, e da criação de condições para a «luta final». As Brigadas Vermelhas italianas e os alemães do grupo Baader-Meinhof, autodesignado Fracção do Exército Vermelho, conduziram nessa altura as acções urbanas de maior radicalidade e impacto público, centradas no ataque a figuras centrais do Estado e do patronato. O Manual do Guerrilheiro Urbano, de Carlos Marighella, morto numa rua de São Paulo em recontro armado com agentes da polícia política da Ditadura militar, marcou muitos dos movimentos revolucionários das décadas de 1960 e 1970, ao declarar que, distinto do criminoso, «o guerrilheiro urbano segue uma meta política e somente ataca o governo, os grandes capitalistas, os imperialistas norte-americanos». Esse era também o sentido de movimentos de grande combatividade e impacto internacional, como a ETA e o IRA, que associavam à luta social objectivos de emancipação nacional.
Nos Estados Unidos, historicamente habituados a conviver com a violência enquanto ferramenta do poder e com a presença da arma de fogo como acessório quotidiano, a resistência ao padrão político e social pós-sixtie radicalizava-se também. Jerry Rubin, que fundara em 1967, com Abbie Hoffman, o movimento dos Yippies (Youth International Party), essencial na organização da resistência à política do governo para o Vietname, virá a rejeitar publicamente as suas posições anti-establishment, mas Hoffman passa então à clandestinidade, edita um guia popular destinado a ensinar a viver fora do sistema (Steal This Book), e permanece até à morte, em 1989, como emblema de oposição ao individualismo e à prepotência do Estado na Nova América de Reagan. Grupos como o Black Panther Party e o Weather Underground, mantiveram, nas novas condições, uma apologia da luta armada que encontrava adeptos nos sectores excluídos da nova ordem e entre muitos intelectuais.
O Exército Simbiótico de Libertação (ESL) apareceu neste contexto. O seu programa era simples e megalómano: considerava-se a vanguarda revolucionária armada da América e visava alargar a sua influência política através de acções espectaculares, que incluíam execuções de importantes falcões da indústria, raptos de personalidades, assaltos a bancos e outros actos de violência. Entre 1973 e 1975, o pequeno grupo sediado em São Francisco – composto por um conjunto de militantes que ostentava nicknames tão sonantes como Osi, Bo, Cujo, Teko, Fahizah, Zoya, General Gelina ou General Field Marshal Cinque Mtume – percorreu numerosas cidades, lançando operações que considerava apontadas ao coração do capitalismo americano e dos seus representantes na Casa Branca.
Tania era o nome de guerra para Patty, Patrícia Campbell Hearst, de 20 anos acabados de fazer, bisneta de George Hearst, um sujeito com forte sentido de oportunidade que enriquecera por volta de 1860 durante a Corrida ao Ouro, neta de William Randolph Hearst, o magnata da comunicação social que inspirou a Orson Welles o Citizien Kane, e herdeira de uma fortuna imensa. Será raptada pelo ESL, num processo «normal» de actuação do movimento, destinado apenas a obter um bom resgate. Por razões que ainda hoje permanecem por esclarecer, acabará por aderir ao movimento, participando de maneira activa, em Abril de 1974, no assalto ao banco Hiberina, em Los Angeles, numa acção filmada pelas câmaras da segurança, cujas imagens, mostrando uma Tania febril e decidida de metralhadora nas mãos, circularão pelo planeta. O escândalo estava assegurado, o que não desagradaria de todo aos membros do exército simbiótico, que acreditavam ter assim abalado o sistema. Mas foi o início do seu fim: o cerco cresceu, acabando a maior parte do grupo por ser abatida durante o assalto da polícia a uma das suas bases. E após um ano em fuga Patty Hearst foi capturada e levada a julgamento, por entre afirmações de arrependimento insistentemente repetidas pelos advogados da família.
O resto da história encontra-se nas enciclopédias e nos bons almanaques. Patty virá a retratar-se publicamente, procurando desculpar-se através da referência a situações de coacção psicológica e acabando por receber uma pena suspensa. Foi depois objecto de dois perdões: um de Jimmy Carter, e o outro, total e definitivo, de Bill Clinton, que reconciliou a filha pródiga com uma América já disposta a desculpabilizar os excessos – incluindo neles as snifadelas do presidente – de uma geração acabada de chegar ao poder. Patricia vive hoje uma vida aparentemente normal e muito «americana». Tal como muitos dos insurrectos da ressaca dos anos sessenta, perdeu o perfil romântico, engordou bastante e passou a gastar muito dinheiro em cosméticos. Herdou o dinheiro do pai, constituiu uma família clássica – casou com o seu guarda-costas – e leva agora, ao que se diz, uma vida de socialite. Os seus companheiros de aventura morreram todos. Ela parece calma. Mas jamais saberemos que sonhos a visitam durante a noite.