O desígnio comunista, o ideal que se aplica a projectar um mundo mais justo, menos desigual e por isso presumivelmente melhor, convive com um espectro que lhe ensombra as noites e lhe atrapalha as rotas. A compleição colossal deste fantasma compreende três partes que funcionam em conjunto. A primeira integra o corpus teórico que definiu a teoria da luta de classes e a adaptou à tomada e à conservação do poder pelos autoproclamados mandatários da «classe revolucionária». A segunda parte comporta a experiência catastrófica, bestial e vencida do «socialismo real». A terceira inclui a organização e a prática dos partidos e organizações que juram lutar pelo comunismo sem serem capazes de ajustar as contas com a experiência histórica que o perverteu. Enquanto esta massa não for compreendida e desmembrada, dificilmente o ideal comunista recuperará a sua capacidade para conquistar milhões de partidários e de simpatizantes e para gerar futuros desejáveis e plausíveis de justiça e de liberdade. A percepção deste problema – e desta necessidade também – é uma boa chave para a leitura de O Homem Que Gostava de Cães, o último livro do escritor cubano Leonardo Padura.
Falamos pois da utopia comunista e é com ela que lidam os três protagonistas (e mais um) em volta dos quais se constrói este romance histórico, resultante, de acordo com o seu autor, de longos anos de «reflexão, leitura, investigação, discussão e, sobretudo, de assombro e horror». O primeiro deles é Leon Trotsky, cujo percurso pessoal e político, sempre castigado e combativo, é seguido a partir do exílio em Alma-Ata, no Cazaquistão, iniciado em 1928, até ao assassinato em 1940, na cidade do México, dando corpo à linha narrativa que norteia as restantes, ocupadas com a trajectória dos outros personagens. O segundo é o catalão Rámon Mercader, o seu assassino, olhado a partir do seu passado de militante do PCE e de agente de elite do NKVD, seguido até à sua misteriosa morte em Havana. O terceiro é Iván Cárdenas, um aspirante a escritor, voz assumida do próprio Padura, que nos vai relatando as vicissitudes da construção do socialismo em Cuba e a forma como esta se relaciona com a causa pervertida em nome da qual o assassinato do antigo líder bolchevique foi concebido. Um quarto protagonista, omnipresente apesar de fisicamente afastado da narrativa, é Estaline, mostrado como chefe impiedoso, vingativo e capaz de impor a sua interpretação do ideal comunista apenas pela via da coacção e do terror.
O mais interessante neste romance magnífico está entretanto na forma como o autor relata o trajecto psicológico dos protagonistas. De Trotsky percebe-se um processo de autoquestionamento de parte do seu trajecto revolucionário que, de alguma forma, o humaniza face às biografias recentes que têm procurado mostrá-lo como o defensor da violência repressiva em Terrorismo e Comunismo, de 1920, e o impiedoso executante da repressão, no ano seguinte, da revolta dos marinheiros de Kronstadt. De Mercader persegue-se o trajecto, mil vezes repetido ao longo do século passado, que levou à desvitalização da dimensão revolucionária e humanista de muitos militantes comunistas por troca com uma fé assente na certeza e na submissão do indivíduo à «ditadura do colectivo». Com Iván encontra-se o questionamento da realidade do modelo cubano e da forma como o sonho revolucionário foi perdendo élan à medida que se foi burocratizando e assumindo uma configuração cada vez mais autoritária. Curiosamente, porém, o resultado de todo este trabalho de pesquisa e efabulação não é a construção de um libelo anticomunista, mas sim, totalmente ao contrário, uma proclamação de fé na crença dessa utopia de igualdade e de generosidade que permanece num horizonte perscrutável. Muito, mas muito, à frente dos fracassos e das canalhices daqueles que lhe desfiguraram o corpo.
Leonardo Padura, O Homem Que Gostava de Cães. Trad. de Helena Pitta. Porto Editora. 624 págs.