A crítica contemporânea da velha ideia de «guerra justa» apoia-se muitas vezes num erro grosseiro. Parte de um princípio fácil de reconhecer por quem da vida social tenha uma perspetiva não contaminada pela paranoia da violência: todas as guerras são más, todas elas são devastadoras, provocam sofrimento e pavor, deixam um rasto sujo e traumático de perda, estropiamento e morte. Entende por isso tal crítica que tudo deva ser feito para que sejam evitadas ou para que cessem. Mas atrapalha-se num equívoco, capaz de contrariar as grandes intenções que lhe estão na matriz, quando sublinha, fundada nos valores do relativismo cultural mais inflexível, a impossibilidade de aplicar à violência armada graus de ética e de justiça. Sob a influência dessa perspetiva, considera que o justo para uma das partes envolvidas não o é necessariamente para a outra, e, em consequência, desconfia de quem se proponha estabelecer critérios capazes de graduar responsabilidades na aferição do mal.
Sempre que o tema ressurge é fácil apontar exemplos históricos que contrariem a eficácia ou o tino dessa forma de conceber a guerra como um mal absoluto, contra o qual a melhor atitude é a passividade. Talvez o mais forte seja aquele que levanta o inventário da destruição de vidas que teve lugar durante a Segunda Guerra Mundial. Sabe-se que o maior número de perdas humanas aconteceu então na União Soviética, apontando as estimativas para cerca de 24 milhões de pessoas, 15 milhões delas civis. Mas o que nem todos conhecem com detalhe é que o segundo país que sofreu maior número de baixas foi a Alemanha, com 9 milhões de mortos, dos quais 4 milhões não eram militares, e não contando nesta estimativa as vítimas do Holocausto. A esmagadora maioria foi sujeita aos bombardeamentos aéreos dos Aliados e às represálias impostas pelo Exército Vermelho. W. G. Sebald foi dos primeiros alemães, e fê-lo só meio século após a guerra ter terminado, a referir de forma pública esta realidade brutal. Na História Natural da Destruição, fala-nos, a propósito da intervenção da Royal Air Force a partir dos céus alemães, de «400.000 voos, um milhão de toneladas de bombas sobre o território inimigo» e das «131 cidades atacadas, algumas uma só vez, outras repetidamente, muitas quase totalmente arrasadas», com «600.000 alemães que caíram vítimas da guerra aérea, três milhões e meio de habitações destruídas, sete milhões e meio de desalojados».
Perante um tal cenário, que poderão dizer, se quiserem ser coerentes, os defensores da inexistência de critérios de justiça aplicados à guerra, pugnando indiscriminadamente pela não-intervenção? Que fez mal quem se opôs pela via da força ao domínio nazi da Europa, tendo sido por certo melhor esperar que o povo alemão se erguesse sozinho contra os seus próprios carrascos? Alguns historiadores têm insistido na cumplicidade da esmagadora maioria dos alemães no apoio ao nacional-socialismo, na crueldade para com os judeus e sobretudo no saque e na destruição levados a cabo nos territórios conquistados, mas nem é isso que está aqui em causa. A realidade é que sem esse vendaval de fogo e horror lançado sobre as cidades germânicas Hitler jamais teria caído, ou então teria conservado a capacidade de negociar uma paz vantajosa. E a Solução Final teria sido cumprida. Neste caso, como em tantos outros, a lei da proporção na condução da guerra e a valorização da justeza desta como forma de conter um regime agressivo e sanguinário, determinou uma escolha muito difícil, com resultados brutais, mas que foi historicamente necessária.
Tudo isto é pouco edificante, sem dúvida, mas não é por isso que deixa de colocar um problema que continuamos a defrontar e para o qual de vez em quando são exigidas repostas. Se a intervenção militar em casos extremos corresponde a uma escolha muito perigosa e com consequências inevitavelmente negativas, em algumas dessas situações o não-intervencionismo absoluto pode representar cumplicidade para com os crimes de quem dele se vale para, com as costas quentes, continuar arbitrariamente a prender, a torturar, a matar, atirando os corpos para a paz das valas comuns.