Desde as obras clássicas de Carlyle, Michelet e Tocqueville, tem permanecido fortíssima a carga política e ideológica que caracteriza a historiografia da Revolução Francesa. Sendo claro que todo o texto histórico é sempre um texto político, a forte vinculação do tema aos debates e contradições em curso nas sociedades nas quais as diferentes interpretações foram produzidas tem sido uma constante. O bicentenário de 1989, dado o seu forte impacto simbólico, catalisou o combate em torno dos trajetos e dos sentidos da Revolução, contrapondo então, embora com diferentes nuances, as abordagens «progressistas» e «reacionária». Em particular, o modo de tratar dois aspetos precisos – o papel da violência revolucionária e a caracterização conspirativa ou circunstancial dos acontecimentos – continuou então a separar as águas. Cidadãos, de Simon Schama, só agora editado por cá mas publicado justamente nesse ano, não fugiu ao confronto. Todavia, encarou-o de uma forma original, o que valeu ao historiador britânico a incompreensão da maioria dos seus pares e de quase toda a crítica. Mais de vinte anos depois, no prefácio que escreveu especialmente para esta edição portuguesa, lembra com ironia a perturbação que a obra causou: «Roger Chartier classificou-o como ‘reaganismo’ nas páginas do Le Monde, o que significou que fui imediatamente felicitado nas páginas do Le Figaro.»
Sobre o problema da violência, Schama observa-a como um cenário, mas não a considera um fator decisivo. Não distingue por isso os mártires dos carrascos, nem defende a inevitabilidade de uma e de outra das condições. A própria execução de Luís XVI e de Maria Antonieta é, aliás, vista como resultado de uma sucessão de acasos. A propósito do confronto entre o papel da ação conspirativa e a força das circunstâncias, distancia-se da leitura «progressista» que destaca esta última, mas também não insiste muito na primeira. Como resultado desta fuga sinuosa às leituras dominantes, desenvolve uma aproximação aos acontecimentos que coloca em primeiro lugar não as multidões mas os indivíduos, considerados, estes sim, como fatores decisivos na evolução de um processo lançado durante os meses que antecederam o 14 de Julho de 1789. Ainda nesta direção, procura mostrar como a Revolução não surgiu de início do clamor do povo simples, mas sim da intervenção de personalidades destacadas da aristocracia e até do alto clero, constituindo uma elite «fluida e heterogénea», a partir de dada altura encantada com os escritos de Rousseau e influenciada, nos planos filosófico, ético e político, pelos princípios do Iluminismo que punham em causa as formas tradicionais do saber e do poder.
A experiência de leitura, pontuada por inúmeras referências de natureza episódica ou pitoresca, prolonga-se por mais de oito centenas de páginas sempre aliciantes. Recuperando da penumbra, frequentes vezes, o papel desempenhado por figuras que, na opinião do autor, a tradição jacobina e a historiografia que lhe seguiu as pisadas quase apagaram da lembrança coletiva, como o conde de Mirabeau e o marquês de Lafayette. Talvez por isso, e tal como Schama faz questão de informar os seus leitores portugueses, no início de 2011 a tradução francesa da obra, publicada entretanto em muitas línguas, ainda não tivesse sido editada. Em 1989 havia logo avisado, em entrevista concedida ao New York Times, que Cidadãos «abala a mitologia da revolução». E «abalar mitologias», podendo ter os seus méritos a longo prazo, tem sempre custos imediatos.
Simon Schama, Cidadãos. Uma Crónica da Revolução Francesa. Trad. de Miguel Mata. Civilização Editora. 816 págs. Publicado na LER de Julho-Agosto de 2011.